É CARNAVAL



O bloco já havia se dispersado. Não restava mais ninguém, além daquele folião amargurado, naquela rua esquecida nos confins do mundo.

Sim, porque aquele bairro, aquelas casas humildes, aquela cidadezinha perdida no interior do interior, era quase o fim do mundo.

Mas isso não importava. Era Carnaval e todo mundo deveria estar alegre.

Até o latido do cachorro na meia-noite e meia de poucas estrelas no céu parecia ter um som diferente, como se ele também soubesse que era Carnaval e não poderia estar triste - a tristeza não era permitida no Carnaval, mesmo no Carnaval do quase fim do mundo.

Ao latido do cachorro seguiu-se um silêncio que fez o folião solitário sentir uma pontada de melancolia.

Afinal, onde estavam os outros, os amigos da cerveja, da música, da dança, dos beijos sem compromisso, onde foram parar os amigos do Carnaval?

O bloco havia se dispersado e só restava naquela rua escondida que não levava a lugar nenhum um pierrô inconformado com a alegria e prestes a se afogar na tristeza.

Um pierrô náufrago de um Carnaval morto.

PUXA-SACO


Nunca se destacou em nada. Ou quase - era mestre em uma apenas coisa, bajular.

Fazia isso de forma sutil, quase com indiferença. O alvo nem desconfiava que estava sendo manipulado. 

Anos e anos de notável persistência nessa requintada arte do puxa-saquismo fizeram dele um respeitável membro da comunidade, um destacado chefe de seção na firma que o acolheu como a um parente querido.

Dizia a si mesmo, nessa altura da vida em que os cabelos começam a branquear, que tivera sucesso.

Sua mulher era apática e insossa, mas lhe deu dois filhos, orgulho e prova de que o caminho que escolhera fora o correto.

Certo dia, recebeu um telefonema da diretora da escola dos meninos. 

- Preciso falar com o sr. - ela disse. É sobre o Joãozinho.

O Joãozinho era o filho mais novo.

Na abafada sala da diretora, cumprimento feito - "Espero que a sra. e sua família estejam bem... Estou às suas ordens..." - sentou-se. 

A diretora foi curta e grossa:

- Seu filho está tendo um comportamento abominável. Suas notas são medíocres, o sr. deve saber. Talvez por isso é que todo dia ele traz um presente qualquer, uma bobagem, um docinho de leite, um pacote de salgadinhos, para a professora. Foi ela que me alertou disso, já está incomodada. É quase um bullying.

Se fez de surpreso, prometeu falar com o filho, pediu desculpas, só faltou chorar.

Em casa, chamou o Joãozinho. Tascou um beijo na testa, disse que ia aumentar a mesada e por fim deu um conselho que o garoto levou pela vida afora:

- Puxar o saco não é para qualquer um, meu filho. Mas você é novo, tem tudo para aprender. Com o dinheiro que eu dei, vê se compra uma caixa de chocolate  para a professora. E leve uma rosa a ela. Mulher gosta de flor.

O VEREADOR E O BARBEIRO



O vereador, barriga enorme, cabelos negros de tinta, camisa branca com manchas de gordura, pediu para falar, pegou o microfone, pigarreou e mandou ver com sua voz de locutor de rádio:

- Caros colegas... Ilustres colegas... Excelentíssimos colegas... 

Sentado bem no fundo da plateia, o barbeiro daquela cidadezinha esquecida pelo progresso, o barbeiro que conhecia todos os fios de cabelo, todas as rugas e poros das peles que sua navalha roçava aparando barbas e bigodes, o pequenino barbeiro que ouvia de tudo daqueles homens cansados, insensatos, medrosos, avaros ou boquirrotos, o invisível barbeiro que conhecia segredos e sigilos e desejos daquele povo que ficava à sua disposição horas e horas, dias e dias, o calado barbeiro que fazia das sessões da Câmara Municipal a sua diversão semanal, coçou a cabeça, virou-se para o lado - onde não havia ninguém - e a ninguém confidenciou:

- Faz pose aqui, em casa é frouxo. E leva chifre da mulher.

E então se acomodou na cadeira. E continuou calado, rindo por dentro.

MILAGRE



Leu no jornal que café no máximo três xícaras por dia.

Que carne vermelha dava câncer.

Gema de ovo, então, aumentava o colesterol.

Pão e macarrão, nossa, explodiam a glicemia.

Era tanta ciência que começou a ter medo de tudo.

Até que lembrou que, criança ainda, não ouviu o que sua mãe repetia toda hora e comeu manga com leite.

Era para ter morrido.

Estava vivo, 50 anos depois. 

Um milagre, sem dúvida.

Foi então que passou a comer e a beber e a viver como quem acha que não haverá amanhã. 


DE VOLTA AO LAR



Então aquela era a cidade onde havia nascido, crescido, vivido a adolescência e saído de lá assim que pôde, assim que sua cabeça conheceu sonhos e esperanças?

Mas aquela não era mais a cidade que havia abandonado por ser tão pequena, tão fechada ao mundo, tão indiferente aos gritos de todos os rebeldes, ou mesmo de todos os inconformados, ou mesmo de todos os desajeitados.

Não, aquela não era mais a cidade onde os passarinhos se misturavam às folhas das árvores e as folhas das árvores caíam no chão da praça e formavam um tapete mágico que levantava voo com o vento, o vento das noites, o vento das manhãs, o vento das tardes, as frias tardes, as frias manhãs, as frias noites.

E se tudo estava mudado, por que tudo parecia igual?

E por que a solidão da solitária estátua do benfeitor dos pobres, do defensor dos miseráveis, estava ainda mais sozinha no meio daquela praça devastada pela indiferença e arruinada pelo desprezo?

Passou os olhos pela paisagem daquela cidade que um dia foi sua, daquele seu lar que o aqueceu por muitos invernos, e por fim, depois de vislumbrar nas sombras dos postes e na geometria das esquinas um resquício de saudade, achou a resposta para o mistério da transformação:

- Está tudo igual a antes. Quem mudou fui eu.

DÍVIDA



Desnorteado depois que o gerente recusara um mísero empréstimo de uns trocados que não iriam fazer a menor falta para aquela abastada financeira, mas que livrariam a sua cara com o maldito agiota que ameaçava tomar seu carro, carro que era o seu xodó, que custou tantas horas extras e tanto sacrifício, ele sentou no banco da praça, respirou fundo com a esperança de que a sua raiva passaria e então poderia pensar como poderia se ver livre dessa maldita encrenca em que havia se metido.

Respirou fundo, mas em vez de sentir sua mente mais clara, como mil vezes havia lido nos compêndios de autoajuda, em vez de sentir seu cérebro mais disposto a ver o mundo com cores alegres e sons beirando a melodia dos anjos, em vez de sentir seu corpo mais leve e pronto para não só resistir às vicissitudes da vida, mas a superar heroicamente as estocadas do destino, ele tossiu, tossiu com violência, tossiu como se expulsasse dos pulmões todo o ar do planeta Terra.

Também, pudera, quem mandou que tivesse sentado num banco bem ao lado do ponto de ônibus que despejava gente aos magotes e que esses malditos veículos fossem antes de tudo insensíveis usinas de poluição?

Tossiu e tossiu, sufocado pela descarga de fumaça que envolveu sua cabeça transbordante de problemas.

A solução para todas as suas desgraças surgiu instantaneamente na forma de um palavrão e de uma promessa que talvez jamais cumprisse:

- Puta que o pariu! Nunca mais pego dinheiro emprestado!

SOFRIMENTO



Retorcia-se na cadeira como se estivesse tendo o mais pavoroso pesadelo.

Sentia, no fundo da alma, que não iria suportar tamanha dor, a que já sentia e a que viria, inevitavelmente, a sentir dentro em pouco.

Lamentava ser, no fundo da alma, esse covarde que sempre tinha sido e sempre iria ser.

Mas, fazer o quê?

Fazer o que, senão suportar, miseravelmente, tamanho sofrimento?

Levou um susto quando uma forte luz se acendeu em frente ao rosto pálido.

E outro quando ouviu uma voz dizer:

- Abra a boca, por favor. Vou dar uma espetadinha na gengiva. Mas não deve doer nada. O senhor não tem alergia à anestesia, tem?

Não soube responder. Estava paralisado de medo.

A VIDA



se a vida o convida

a uma eterna busca

não despreze a lida

e lute e sofra

e se puder sorria


se é isso a vida

faça o possível

para existí-la


e se houver a súplica

por uma vida fácil

não dê ouvidos a tal piada


faça da vida

a sua amiga

a sua amada

a sua morada


e viva a vida

como se ela fosse 

a torta estrada 

que leva ao nada

O FELIZ NATAL DE PAPAI NOEL



Papai Noel chegou em casa arrasado. 

Doía tudo, da cabeça ao dedão do pé.

Também, pudera.

Doze horas sentado naquele troço que chamavam trono, se segurando para não ir ao banheiro, aguentando centenas de crianças no seu colo.

E as bobagens que ouvia delas, então...

Papai Noel abriu o casacão vermelho que revelava a sua barriga falsa, tirou a barba branca que coçava sua cara toda, jogou no canto os sapatos pesadíssimos que estrangulavam seus pés, e por um instante se sentiu reconfortado por ser o que era nesses dias de loucura, de gente indo e vindo, de jingle bells insuportáveis, de luzes e mais luzes pulsantes e tremendamente irritantes.

Papai Noel, por um instante, se sentiu no Polo Norte, longe de tudo.

- Ei, João, que folga é essa? Vem aqui me ajudar a lavar a louça!

Papai Noel, obediente, se levantou, se arrastou até a cozinha, a apertada cozinha de sua humílima casa na periferia paulistana. 

Papai Noel arregaçou as mangas do casacão vermelho e mergulhou as mãos na água fria que jorrava da torneira da pia lotada de pratos, copos, panelas, talheres, a sujeira acumulada desde ontem. 

Foi então que Papai Noel desejou a si mesmo um feliz Natal.

MEIA PORTUGUESA, MEIA CALABRESA


O sujeito não falava. Gritava. Vomitava palavras.

O rosto inchado. Vermelho. Puro ódio.

Da boca saíam perdigotos nojentos. 

Baba venenosa.

- Que conversa é essa? Eu disse que ia pagar com cartão! 

- A moça deve ter se enganado. Não me deu a maquininha...

- Ela que se foda. Não vou pagar com dinheiro. Eu disse que era cartão!

- Então eu vou ligar para ela, pra ver o que a gente faz...

- Vai ligar porra nenhuma. Quero a minha pizza agora!

Foi nesse momento que o entregador, rapaz esperto, sacou o lance do sujeito. 

E foi mais rápido que o otário.

Subiu na moto, pizza na mão, deu partida e se mandou.

Deu para escutar o que disse antes de sumir na rua:

- Meia portuguesa, meia calabresa, né? Vai ficar na vontade, seu mané.

FIM DE PAPO


- Você está cada vez pior!
E saiu da sala, dona da casa, rainha do lar, batendo a porta, encerrando a discussão.
E ele estava mesmo cada vez pior.
Dor nas costas, dor de cabeça, dor no pescoço, insônia, azia...
E isso agora, essa mania de abrir a boca quando podia muito bem ficar quieto.
Mas o silêncio na casa, passada a tempestade, até que era bom.
Acalmava.
Melhor ir dormir agora que tudo pode piorar.

AMANHÃ É SOMENTE HOJE COM OUTRO NOME


Que amanhã caiam as asas dos passarinhos
e os aviões se espatifem no chão;

que amanhã as sirenes das fábricas gritem uivos
alucinados de medo e terror
e as paredes das fábricas desabem e estilhacem
os tímpanos dos chefes de repartição;

que amanhã os carros engatem marcha-a-ré
e trombem uns nos outros numa infinita balbúrdia
e os sinais de trânsito desafiem a lógica
e deem passagem a todos, mesmo os carroceiros
miseráveis e seus cães sarnentos;

que amanhã o céu se esconda sob a mais negra
nuvem de fuligem, poeira e vergonha
e o sol desapareça de vez e vá iluminar outros planetas;
que amanhã o almoço seja parco e pobre como
o mais miserável grão infecundo que a terra 
nos proporciona - a nós, os miseráveis! -;

que amanhã seja um dia como todos os dias que
se sucedem neste país sem esperança e riso,
sem outros dias a embalar os sonhos 
e sem despertar as ilusões e ver triunfar os gênios;
porque amanhã não existe,
amanhã é uma quimera,
amanhã é somente hoje com outro nome.

ODE À DESESPERANÇA


Onde era para haver silêncio
há um estouro do escapamento 
de uma moto desvairada
e onde era para haver ninguém
há um casal de braços dados
amorosamente ligados 
no seu amor à morte.

O nosso tempo não admite 
senão isso senão essa
intransigência à plenitude
essa implicância à satisfação 
esse gemido de dor.

Onde era para haver vida
há somente a vaga esperança
de que dias melhores virão.

HOMENS PEQUENOS


1
Homens pequenos ignoram
as lágrimas e os risos 
as cores e a beleza que há 
no choro de quem mal nasceu
ou no silêncio de quem se vai
(eles são incapazes de amar)

2
Homens pequenos não sofrem
nem se perdem em sonhos de glória
nem nas utopias de vastas vitórias 
contra improváveis moinhos de vento

3
Homens pequenos são assim 
porque assim não têm compromissos
não assumem responsabilidades
não se destacam na multidão
e seguem na vida tranquilos e confortáveis
em sua minúscula existência

4
Homens pequenos passam pela vida
ignorados por ela e são louvados 
por outros homens sem talentos 
sem nada a dar sem nada a dizer 
sem marca nenhuma que não a pequenez

5
Homens pequenos 
são fantasmas mortos vivos
que gastam as horas do dia
a fazer coisas pequenas 
tarefas inúteis missões fracassadas
frustradas tentativas
de um mísero sucesso

6
Homens pequenos têm medo
do escuro
da luz
da lua 
do sol
do cheiro de suor do trabalhador braçal
da testa franzida do homem de negócios
dos falsos sermões do pastor da esquina
da suja mão estendida do indigente 

7
Homens pequenos só obedecem
os interesses dos outros homens
não perturbam o sono dos poderosos
mas falam alto com os pobres de espírito

8
Homens pequenos se passam por homens mas são apenas pequenos

A LUZ NO FIM DO TÚNEL


Era para ser o dia depois da noite
mas acabou sendo que a noite 
não se deu por vencida e encheu
de escuridão o que era  o dia

Houve gemidos houve gritos
mas nenhum foi mais forte 
que a risada histérica 
a gargalhada estrondosa 
que ninguém entre os vivos
teve a coragem de ouvir

Era para ser uma madrugada
silenciosa e cheia de vazios
que se acabava com o galo cantando
e a estridência das ruas coloridas

Mas o que veio depois foi 
o indisfarçável cheiro da carniça 
o indescritível medo da morte
o inútil pedido de socorro

O sol não passa de uma promessa
sem caráter 
sem sentido 
sem vergonha
sem luz

OS MORTOS E OS VIVOS


Os mortos se escondem soterrados 
em sua vergonha e apodrecem calmamente
sem que nenhum ruído os importune.

Aos vivos cabe apenas a vergonha
e se dela escapam não lhes resta mais nada
a não ser esperar a morte.

Os mortos não podem voar, nem respirar,
nem ao menos bocejar de tédio;
os vivos se recusam a voar, respiram por 
aparelhos e adormecem com pílulas.

Os mortos vivem na lembrança,
os vivos morrem sem esperança.

OS DEUSES DE SANGUE E PUS


Dentes brancos, tratados, perfeitos;
rosto de pele brilhante, cremosa;
fala erudita de total sapiência;
palavras medidas, gestos precisos -
nossos heróis têm a imagem de deuses.

E assim agem como se fossem,
ao vivo, em cores, no espoucar dos flashes,
à luz cegante que tornam as câmeras
irresistíveis portos seguros
das verdades incontáveis
e das convicções irrefutáveis.

E assim ninguém há de dizer que são apenas homens,
e menos ainda, que têm os vícios dos homens,
e menos ainda, que por serem de carne e osso,
de sangue e pus, de merda e vômito,
nunca serão deuses, nunca serão ao menos 
homens de verdade, porque a esses 
não importa a glória pérfida dos hipócritas, 
mas sim o orgulho de ter vivido em paz
consigo mesmo e com os outros homens.

O FOGO QUE NOS PURIFICA


Deixem a floresta queimar o fogo mais rubro,
o fogo mais alto e o fogo mais estrondoso;
que as chamas espalhem o terror por todas 
as criaturas rastejantes, os pequenos seres alados,
os ínfimos e invisíveis operários do solo;
que a fumaça asfixie e afogue pulmões 
e o calor seja tal que a pele se desprenda 
e todo tecido vivo enegreça, carbonize
e vire pó - porque ao pó retornaremos.

Que importa que o ar fique irrespirável,
que o sol desapareça ao meio-dia,
ou que os hospitais se entupam de 
cadáveres ambulantes, zumbis de casacas,
damas da sociedade com roupas de grife?

Há remédios de sobra para todos eles.
Por isso deixem a floresta arder até a última agonia,
porque os tamanduás embandeirados,
os macacos saltitantes, as araras coloridas,
os jacarés preguiçosos e os lagartos sonolentos
não são como a gente, não sabem explicar 
as razões de terem nascido sem voz, 
sem que possam ao menos pedir socorro,
e não entendam que o fogo purifica,
redime os pecados e eleva a alma aos céus.

O último desses seres sem importância
será o nosso legado, o nosso orgulho e a nossa vergonha.

EU VI O LOUCO E O LADRÃO


Lá na esquina vi o louco que proclama o fim do mundo.
Estava vestido como um marechal emplumado
e carregava um revólver de brinquedo, um apito de lata
e um urinol cheio de páginas de um resto de Bíblia.

Vi também naquele espaço onde se cruzam incertezas
perenes, sonâmbulos desatinados e pobres de espírito
alguém gritar "pega ladrão", "chamem a polícia" 
e outras tolices ultrapassadas por estes tempos de ódio.

Vi mesmo o ladrão correr no sentido contrário ao vento
e ir de encontro à fatalidade dos trombadinhas minúsculos,
larápios mequetrefes e reles punguistas:
o esboroar-se à vista da autoridade de uniforme cáqui e 
quepe solene tal qual a ponta de uma vara justiceira.

Vi o ladrão se curvar sob o peso de pancadas e gritos 
e o louco implorar perdão pelos pecados de todos.
Não vi mais porque no bar da esquina a TV nos
mandava calar a boca e obedecer a ordem do dia.

Era de tarde, estava frio, carros passavam indiferentes
a qualquer desvio de sua rota de volta ao covil.

HOMENS E BEBÊS


Fingia que não se importava com os xingamentos, os terríveis palavrões, as ameaças de todo tipo, e até mesmo as fracas agressões que recebia do frágil corpo daquele homem, o seu paciente, sua fonte de renda exclusiva depois que foi demitida da Casas Bahia.

Havia investido uma boa parte do que recebera pela dispensa num curso de cuidadora de idosos. 

Achava que levava jeito para a coisa, gostava de crianças e velhinhos, sentia orgulho em dizer que esteve presente, dia e noite, no último ano de vida de seu pai.

Mas nunca esperara ter de cuidar de alguém como aquele homem, alma ruim.

Era só ajudá-lo a se levantar da cama, ou da poltrona, ou dar comida a ele, ou despi-lo para tomar banho, ou, enfim, fazer qualquer coisa que uma cuidadora tem de fazer com seu paciente, que ele se transformava, virava um demônio.

- Filha da puta! Vai embora, você é horrível!

Era uma agonia.

E não adiantava reclamar com a filha daquele homem:

- Não ligue, ele não fala por mal, isso é da doença.

Quando chegava em casa, chorava de nervosa.

Até que um dia percebeu que se continuasse com aquele homem iria ficar doente - nem dormia direito mais.

Pediu a conta.

E resolveu tentar um novo ofício: foi ser babá.

- As crianças choram, mas não dizem palavrão. De resto, aprendi a fazer quase tudo que um bebê precisa: dou comida, banho, troco a fralda... - explicou para a vizinha, sua boa amiga.

Foi, enfim, feliz.

O ÚLTIMO TORCEDOR


A bandeira era um farrapo só.
Como seu time.
O pior entre os piores.
Um saco de pancadas.
De vexame em vexame, de goleada em goleada, sobraram sete jogadores, três torcedores, e um cachorro magro e feio que abanava o rabo quando o juiz apitava falta, pênalti, escanteio, tiro de meta, gooool.
Nem técnico havia.
As camisas do uniforme estavam cheias de buracos, a cor indefinida entre um pálido amarelo e um branco acizentado.
Ninguém tinha chuteira.
Quando o jogo começava a derrota surgia inexorável e imensa em todos os cantos, em todos os rostos, em todos os lances grotescos daquele time despedaçado.
Os três torcedores viraram um - Altamiro desesperou-se e mudou de bairro para ficar longe da humilhação -; Bento trocou a paixão do futebol pelo corpo da mulata Joana.
Sobrou ele, o obstinado, o último torcedor.
- Homem que é homem não muda de time - dizia a quem estranhava sua obsessão pela derrota.
Mas o tempo passou depressa, o campo esburacado onde tanta raiva e vergonha foram plantadas virou um condomínio de luxo, cinco altas torres de prédios indiferentes aos dribles e fintas que incontáveis craques anônimos deram às vicissitudes da vida.
O time se foi, cada um por si, cada qual para o lado que achou melhor.
E ele, o abnegado, se sentiu traído, se sentiu roubado.
- Meu time me abandonou, mas eu nunca vou abandonar meu time - falava em voz alta, a mesma voz com que xingava o juiz, os bandeirinhas, o goleiro do adversário, para quem quisesse ouvir.

A LEI DO SILÊNCIO


Morava no décimo andar, ou seja, o último.
Reclamava de todo e qualquer barulho: cachorro latindo, gato miando, criança chorando, televisão alta, pássaros cantando, caminhão de gás...
O zelador não aguentava mais.
O síndico, então...
Os vizinhos de seu andar já nem o cumprimentavam.
O de baixo, numa reunião do condomínio, quase quebrou uma cadeira em sua cabeça.
Seu mau humor durou anos.
Sua intolerância tornou-o famoso na rua.
A molecada fugia quando ele chegava com seu Gol prateado.
Os porteiros do prédio nem ousavam olhar para ele quando ele saía ou entrava.
E a vida seguiu assim por vários anos, até que um dia...
Foi bem naquela hora em que o pessoal ia trabalhar, de manhã bem cedo. 
Mais de dez pessoas foram testemunhas de sua derrocada, ali no pátio, ao lado do parquinho com seus brinquedos desgastados.
Ele até que tentou se safar, mas não deu, pois além de gritar e botar o dedo na sua cara, dona Geralda, a patroa do seu Juvenal, o reclamão, ainda lhe deu uma estrondosa bofetada, daquelas que envergonham por toda a vida qualquer machão.
Depois disso, os cachorros latiram à vontade, os gatos miaram como nunca, as crianças choraram até arrebentar os pulmões, o som da televisão virou uma algaravia infernal, os pássaros soltaram a voz e o caminhão de gás soou sua musiquinha até os alto-falantes estourarem.
E o seu Juvenal ficou mudinho.

CHOCOLATE DOCE DEMAIS


Quando pisou na bola pela primeira vez, mandou à patroa rosas vermelhas. Foi perdoado, mas teve de prometer andar na linha.
Na segunda vez, escolheu um arranjo de gérberas
Custou uma nota, porém valeu a pena: o caso ficou por isso mesmo, nem promessa fez.
Na terceira, juntou um cartão com versos mancos às anêmolas que comprou para o amor de sua vida. 
Escorreram lágrimas daquele rosto ingênuo.
Houve uma vez mais, apenas uma.
Achou que se livrava fácil com um buquezinho de pobres margaridas.
Acabou tendo de se consolar do adeus inesperado mastigando os chocolates doces demais que havia guardado para tal eventualidade.

A PAZ DE ESPÍRITO


O pequeno telefone celular tocou.
Não uma, mas duas, três vezes.
Aquele som estridente da campainha que ele não soube escolher.
Depois parou.
Foi só então que tomou coragem para ver o número.
Um número desconhecido.
Quem seria?
Quem teria sido tão insistente para ligar três vezes em seguida?
Procurou esquecer o assunto.
Mas não pôde, porque o telefone gritou novamente por ele.
Alto.
Forte.
Até se calar.
O coração disparado, a mão tremendo, a boca seca, os sinais do pânico.
O silêncio.
O pequeno telefone jogado na mesa, um objeto como qualquer outro, porém capaz de provocar o terror, minúsculo demônio.
Não pensou.
Agiu por instinto, como as bestas.
E só depois de ouvir aquele inconfundível CRAC que fez o monstro ao se despedaçar sob os seus pesados e duros sapatos é que pôde reencontrar a paz de espírito intensamente almejada desde sempre.
Desde que havia comprado, em seis suaves prestações, aquele aparelhinho que lhe prometia o paraíso. 

O HOMEM INSIGNIFICANTE


1
Não era baixo nem alto. Nem gordo nem magro. Não ganhava bem nem mal. Classe média, sustentava a família - mulher e filho - morando num apartamento de dois quartos, 55 metros quadrados, num bairro da periferia, comprado com a ajuda do sogro e do dinheiro do FGTS.
Almoçava fora de casa, ia ao trabalho no Palio 99 que levava uma vez por ano ao mecânico - de confiança - perto da padaria. Voltava só depois das 8 horas da noite. Comia alguma coisa que a mulher tinha feito no almoço, via o Jornal Nacional, lia a Folha, que comprava religiosamente na banca perto do emprego.
Dormia um sono agitado, tinha a pressão alta, mas não consultava nenhum médico. Preferia o remédio que o farmacêutico lhe vendia, com a garantia de que era um lançamento, tiro e queda e tal. Consultava a bula e fingia sacar tudo aquilo que as letrinhas prometiam e advertiam.
2
O dia em que voltou para casa com o coração disparado, quase na boca, a adrenalina solta no corpo cansado, começou com nuvens e terminou com chuva.
E foi a chuva a responsável por tudo.
Se o asfalto da rua do posto de gasolina onde, por R$ 60 mensais guardava seu Palio, estivesse seco, talvez,
muito provavelmente,
com certeza absoluta,
aquele Gol verde tivesse parado apenas poucos metros depois de ter as rodas travadas pela ação instintiva do seu motorista que meteu o pé no freio quando o moleque largou a mão gorducha da mãe e correu desembestado sabe-se-lá-para-que-direção apenas que era para onde não deveria ir ou seja:
o meio da rua com o asfalto molhado e escorregadio.
A buzina estridente fez com que virasse a cabeça para a esquerda e fosse atingido de frente por pingos d'água agressivos e gelados. Aí, nesse instante, seu olhar se congelou numa cena de cinema, uma tragédia descolorida pelo anoitecer precoce devido às nuvens opressivas daquele dia úmido.
pensou
não pensou
e se atirou com toda a força que pôde ao encontro daquela figurinha de vermelho e verde e tão viva que se movia como um personagem desarticulado de desenho animado.
3
Ao tocar a campainha do apartamento no sexto andar não esperava que sua mulher fosse se atirar em seus braços e dizer eu te amo como nos filmes.
Nem que seu seu filho viesse lhe contar que era o melhor aluno da escola que custava mais que o salário mínimo por mês e não tolerava mensalidades atrasadas.
Nada disso.
Sabia que naquela noite o sofá desbotado,
as cadeiras meio bambas,
a parede de cor indefinida,
os talheres gastos,
o prato lascado,
a comida insossa,
as notícias velhas da televisão e do jornal
e até mesmo o beijo mecânico de sua mulher murcha e sem graça e a indiferença ingênua de seu filho raquítico e pálido
teriam um gosto único e especial.
Porque naquela noite ele não era o homem insignificante que acostumara toda a sua vida a ser.





DUAS CARAS



Do lado direito era feio, duro e implacável.
Do lado esquerdo contrariava a lógica e se sentia humano.
No primeiro passo esmagava qualquer vida que se pusesse à frente.
No segundo, ultrapassava os limites e chegava a flutuar.
O primeiro gole queimava.
O segundo aplacava o fogo.
No espelho, o que via era só um rosto.
No travesseiro, fechava os olhos e sonhava com anjos.
Era certo de dia
e errado de noite.
Sentia a alegria dos palhaços
e a tristeza dos desenganados.
Passeava por praias, montanhas, estradas sem fim e cidades encantadas.
Trancava-se no sótão escuro habitado por fantasmas ancestrais.
Comia e bebia com prazer.
Maltratava seu corpo com a tortura da sede e da fome.
Corria.
Parava.
Subia.
Descia.
Se fosse preciso calaria as injustiças do mundo com sua voz embargada de emoção e fúria.
Mas nunca faria nada que pusesse em risco sua tranqüila e segura concordância com tudo.
Num certo dia de sol, depois de se mover solto e leve pela praça que separava sua casa da estação do metrô, foi subitamente abordado por dois pivetes que
primeiro deram um murro no seu estômago,
depois chutaram suas costelas quando estava no chão
e, por fim, saíram rindo como se nada tivesse acontecido, levando sua carteira com 150 mangos, cartões de crédito e débito, documentos e outras coisas de menor importância.
Foi aí que quis rir,
mas apenas chorou.



PORRADA


Era ruim de pequeno. 
Botava fogo em gato, cortava rabo de lagartixa, maltratava o irmão menor e chutava a perna da mãe quando ela lhe dava umas palmadas.
Grande, sempre que podia, continuava com as maldades.
Passava com seu carrão por debaixo de um viaduto quando viu dois sujeitos mulambentos deitados debaixo de um cobertor imundo.
Parou o carro, desceu e foi falando:
- Olha aqui, uma nota de cem reais para quem ganhar uma luta entre os dois. É vale-tudo mesmo, quero ver sangue.
Os dois se olharam, se levantaram, foram se chegando meio desconfiados e, quando estavam bem pertos, encheram o playboizinho de porrada.
Ele ficou no chão, sangrando e gemendo.
Perdeu a nota de cem, a carteira com mais 250, todos os documentos e, é claro, o carrão preto quase novo, que só viu arrancar num tranco e sumir na avenida longa e deserta.



TELEFONE SEM FIO


- Você viu? A mulher do patrão entrou na sala dele e saiu de lá na maior pressa...
- ...Saiu de lá chorando à beça...
- ...Parece que o filho deles foi pego fumando um cigarro...
- ...Com maconha no carro...
-...Resolveram tirar um mês de férias...
- ...O garoto vai ficar com uma tia...
- ...Numa casa completamente vazia...
- Tenho tanta pena dessa família!




QUARTETO DE CORDAS


O quarteto sempre havia se dado bem.
Até o dia em que o segundo violino esticou a corda demais - o primeiro violino achou aquilo um insulto.
A viola se incomodou e entrou na discussão: reclamou uma autoridade que foi contestada pelo grave violoncelo.
No meio da sonata o pau quebrou feio.
E não houve Brahms que desse jeito nem Beethoven que consertasse o estrago ou Mozart que restabelecesse a ordem.
A paz chegou apenas quando baixou um Pixinguinha com seu jeito manso de insinuar a melodia e sua maestria em prever o tempo certo para qualquer compasso.
Ou seja, o recital teve um fim imprevisto, mas satisfatório.
E todos voltaram felizes para casa.
Menos o piano, que permaneceu mudo, porque não tinha nada a ver com aquela confusão toda.