Techno music

tum tum tum tum
era a música que vinha do apê de cima ou de baixo ou sei lá qual dia e noite noite e dia e não havia jeito de parar aquela merda o síndico nunca estava e o zelador era um zé mané escorreguei uma nota de dez para o porteiro me dizer que era no trinta e três
o tum tum tum
fui educado toquei a campainha
uma vez
duas
e três
e a porta se abriu e apareceu uma mina desleixada cabelo ruivo em pé cigarro na boca jeans todo rasgado camiseta do che
meu deus pensei é uma hippie é uma punk ou pior drogada bêbada suja quem sabe o que ela é?
falei mansinho argumentei e ela nem para desligar aquele som techno pop baticum antineurônios um
tum tum tum
sem melodia e ela olhava para mim como se nunca tivesse visto um cara engravatado de boas maneiras que só queria silêncio e paz
falei oi eu sou do cento e cinco e eu sinto muito incomodar mas é que o som está muito alto e fui argumentando e ela me olhava como se eu fosse um ser exótico um antropófago um marciano
até que disse desculpa é meu irmão que gosta disso eu sou mais tranqüila e falou assim com uma voz de anjo descabelado e meio punk e foi então que no meu peito o coração fez
tum tum tum
descontroladamente fora do tom pensei é agora ou nunca e convidei a linda punk hippie cabelo ruivo em pé para ouvir o último cd da paula toller e ela me olhou e disse acho que não eu gosto mesmo é de pagode samba raiz ivone lara e velha guarda da portela e mansamente fechou a porta na minha cara
fiquei parado em frente do elevador e foi só quando cheguei no meu apê percebi que o pop rock nacional é uma grande porcaria
e ponto final

Zoológico

O leão dormia ao sol e pouco se importava com as moscas à sua volta.
As girafas olhavam para as nuvens, cansadas de ter os pés no chão.
O gorila descascava a banana como um experiente gourmet.
O hipopótamo escancarava o sorriso de dentes enormes.
O elefante balançava a tromba e abria caminho para toneladas de indiferença.
Patos, gansos, marrecos e cisnes velejavam barulhentos por águas mansas.
Macacos-pregos se mostravam os trapezistas ideais daquele circo mágico.
No caminho de casa, dentro do ônibus cheio, olhou o cobrador suado, a grávida e seus pesados pacotes, os três moleques tatuados, o evangélico estrábico, o anão de óculos escuros e tentou encontrar neles a placidez do leão, a altivez da girafa, a imponência do gorila, a força do hipopótamo, a sabedoria do elefante, a suavidade dos cisnes e seus primos pobres ou a esperteza congênita dos macacos.
Achou apenas gente igual a ele. Sem cores nem qualidades.
Naquela noite um cão latiu, um gato miou e ele sonhou que estava atrás das grades de uma jaula do tamanho do mundo.
Acordou e teve de contar carneiros para dormir de novo.

Esquina

aqui é uma selva e só vive quem pode mais
e eu sou foda mesmo
e daí que não importa
estou certo
ou não?
e daí que estou duro
estou mesmo
mas quem vai encarar?
tá vendo mina?
tá sacando meu lance
vai encarar ou não?
fico o dia todo babando de vontade e chega essa hora babau eu pifo e só quero descansar
vai encarar?
ou não?
esta esquina é um saco pareço um palhaço esperando essa porra de sinal abrir
ou não?
ou não? O caminhão descia até que devagar, mas o motorista, de saco cheio, pisou no freio tarde demais e foi aquela confusão, vidro e lata para todo canto, e o golzinho ficou espremido entre o enorme pára-choques e o muro grafitado do terreno baldio ao lado da padaria.
A televisão de cachorro estava cheia e quase tombou com a batida. Batatas se espalharam pelo chão, mas nenhum frango escapou do espeto. Seu Manuel soltou um ave jesus minha mãe do céu e deixou cair o copo da média que ia servir para o Tiãozinho da banca de jornal.
O motorista do caminhão, depois do estrago feito, desceu da cabine e colocou a mão na cabeça. Houve gente que disse que ele até chorou quando olhou de perto o estado do golzinho.
Quando a viatura preto-urubu levou o corpo do rapaz embora já era noite alta e estava frio e a última luz da padaria se apagava.
A sombra do vigia dobrou a esquina e seguiu o vento.
ou não?

Telemarketing

Triiimmmm.
-Alô... É ele. Sei, sei. Me desculpa, tá? É que eu já colaboro com outra instituição e... Isso, liga daqui a um mês.
Triiimmmm.
- Alô... Sou eu. De onde? Ah, já tenho cartão. Só se a anuidade for grátis pra sempre. Não? Então não interessa.
Triiimmmm.
- Alô, com quem? TV a cabo? Tinha, cancelei. Dinheiro jogado fora. Só vejo mesa redonda de futebol.
Triiimmmm.
- Alô... Ah, você de novo? É, me ligou na semana passada. Eu disse pra me ligar em um mês, não uma semana. Dinheiro curto. Onde fica esse lar? De velhinhos? Pera um pouco, vou pegar a caneta. Rua... número... Tá bom. Se der, passo aí no fim de semana. Tchau. Ah, sua voz é linda.
Triiimmmm.
- Alô... Não tem ninguém com esse nome. Deve ser engano. Eu? Não, já tenho conta em dois bancos. Cartão? Também não me interessa. TV a cabo? Pra quê, só vejo novela.
Triiimmmm.
- Alô... Oi, fui sim. Conversei com o pessoal, falaram bem de você. Os velhinhos? É, bem cuidados, limpinhos. Estava esperando você me ligar. Isso, pode mandar buscar. Vinte por mês. É o que eu posso dar. Por que não vem você mesma? Amanhã à tarde, estou de folga. Legal, vou esperar.
Triiimmmm.
- Você ligou para 87... Deixe o seu recado depois do bip.
Piiiiiiiiiii.