O noivo

Chegou esbaforida no escritório, olhando para os lados, assustada.
– Vê pela janela se ele não está na esquina - pediu para a amiga.
– Não tem ninguém, acho que ele desistiu.
A amiga estava cansada de ouvir a história: o fora no noivo, a dor de corno dele, que passou a perseguir a pobre coitada. Eram telefonemas no meio da madrugada, buzinas altas horas da noite, vultos indistintos na escuridão, bilhetes ameaçadores...
Agora, ele estava passando da conta. Havia começado a seguir a pobre coitada em pleno dia.
Tinha crises histéricas em pleno trabalho. Se o telefone da sua mesa tocasse, pedia para quem estava ao lado atender. Emagreceu. Ficou com olheiras. A amiga começou a se preocupar de verdade.
Ninguém teve notícias dela nas férias. Quando voltou, parecia outra pessoa. Os olhos vivos, ria de qualquer coisa. Nem se importava em atender o telefone.
Foi a amiga que contou a novidade para todos: o antigo noivo estava namorando sério, para casar mesmo, uma garota da alta, uma barbie que adorava as colunas sociais. E tinha largado do seu pé.
– Parece que ele contou para ela uma história de que foi largado quase que no altar e a tontinha ficou com pena dele. Nem sabe que o cara vai aplicar o maior golpe do baú...

Pobre diabo

Foi importante no tempo em que a indústria têxtil era forte na cidade. Chegou a ser gerente de várias fábricas e nessa época ganhou o apelido com que ficou conhecido: Diabo. Mas da mesma forma que as tecelagens foram sumindo, ele foi se apagando, caindo, se tornando apenas uma lembrança de antigamente. Alcóolatra, passava semanas bebendo sem parar tudo o que podia, emprestando dinheiro de todos os conhecidos. Depois sumia uns dias. Quando reaparecia, estava com a barba feita, a roupa limpa. Jurava que nunca mais ia beber. Ninguém acreditava.
Poucas vezes - e para poucos - contou a sua história verdadeira. Preferia a lenda. O gerente mandão, capataz inflexível que anotava num caderno até os dias em que as empregadas ficavam menstruadas. Um sujeito tão mau que chegou a se vestir de diabo, com roupa vermelha e rabo, para assustar as pobres coitadas que pensavam em fazer uma greve.
– Histórias bobas. Tudo mentira. Me deram o apelido simplesmente porque tinham inveja de mim. Eu gostava de fazer as coisas certas, não permitia liberdades comigo no trabalho. Quiseram me ofender e eu virei o Diabo.
E ficava com a expressão perdida, o olhar distante, os braços pendidos...
– Rapaz, eu não estou mais aguentando. Preciso tomar alguma coisa. Me empresta um dinheirinho, quando eu receber a aposentadoria eu acerto com você...
E lá ia ele, sem chifres, sem rabo. Apenas um pobre diabo.

Aposentado

Vida de aposentado é chata. Mal havia acabado de levantar, fez o café para a família, ou seja, a mulher e os dois filhos. Limpar o carro foi a tarefa seguinte. Depois, seguiu a rotina de ir à banca comprar o jornal. O resto da manhã, até o almoço, gastou se inteirando das últimas notícias – se é que elas tivessem alguma importância para ele. Depois do almoço, uma soneca. Depois da soneca, hora de sair para a rua, ver como andam as coisas. 
Até o centro da cidade a rua seguia plana, com pouco comércio e muitas casas, alguns prédios. Pouca gente para cumprimentar. Só no salão de barbeiro. 
– Novidade, seu João?
 – Tudo velho. Vamos aparar o cabelo? 
– Hoje não. Quem sabe amanhã.... 
No centro, o bom era ficar um tempo na praça, com os amigos, também aposentados. Era ali o ponto de encontro de todos, ou quase todos que realmente importavam. Falavam de política, discutiam o tempo, ficavam sabendo quem havia morrido ou quem estava doente. Tomavam um cafezinho. Sentavam no banco e olhavam os jovens passando. 
Assuntos esgotados, o dia ainda era claro e dava para bater mais um pouco de perna. Olhar as vitrines, ver as novidades da moda ou os filmes que estavam passando nos dois cinemas centrais. 
Hora de voltar para casa. Passar na padaria, ver se ainda tem pão quente. O cheiro é tão bom... 
Em 15 minutos chegaria em casa. Sem pressa. Afinal, para quê pressa? O portão da garagem estava ainda aberto, sinal de que sua mulher ainda não havia voltado. Era ela quem ficava com o carro. Trabalhava com o carro. Ele não precisava de carro nenhum, tinha suas pernas para andar. 
Na televisão, programas chatos, sem graça, notícias sobre violência. No jantar, um bom copo de vinho. Amanhã, quem sabe, uma cervejinha
Os filhos comem e saem correndo, cada um para um lado, é festa, é namoro, essa juventude de hoje não para, tem uma energia danada. 
Antes de dormir, ele sente o cansaço no corpo. Um estranho cansaço. Um cansaço bem-vindo. O sono foi pesado, mas mesmo assim ele sonhou. Era como um passarinho que voava quando queria, sem peso, sem asas, sem culpas...

Viagem

Não demorou para aparecer um táxi. A ida para a rodoviária foi rápida, os sinais de trânsito estavam verdes, havia poucos carros àquela hora da manhã. Era tão cedo...
Comprou a passagem, olhou em volta, não viu ninguém conhecido, sentou-se num banco e ficou esperando o ônibus. Um ônibus grande, enorme, feio, fumacento, que a levaria, em poucos minutos, para fora daquela rodoviária pequena, mínima, tolamente pintada de verde que ela passou a conhecer tão bem nos últimos dias.
Escolheu a janela. Por sorte o ônibus estava quase vazio. Ninguém viajava tão cedo assim. O lugar ao seu lado estava desocupado. Sorte... Uma palavra estranha, qual seria o seu significado? Seria sorte o fato de ela estar indo, sozinha, para a capital, àquela hora da manhã, num ônibus com a metade de sua lotação? Seria sorte esse ônibus sacolejar, rosnar, grunhir todos os seus metais pelas ruas da cidade? Seria sorte ver a paisagem passar sem sentido pela janela: casas, carros, placas, gente. Seria sorte ela respirar aquele ar úmido que vinha dessa paisagem, entrava pela janela e batia em seu rosto? Ou não?
A sorte, na verdade, era uma palavra proibida para ela naquele instante em que a paisagem mudava, as rodas do monstrengo passavam a atritar o asfalto da estrada e tudo se movia mais rapidamente. O tempo passava mais rápido, então. Nada do que fizesse poderia mudar isso. Estava, até chegar a seu destino, inexoravelmente presa àquela poltrona alta e macia, àquela paisagem monótona e fria, àquele movimento suave e constante.
Até então, sua vida tinha sido assim: suave e constante.
Teria tido sorte?
Teria sido feliz?
A felicidade era algo tão sem sentido quanto a sorte. As duas caminhavam à frente daquele ônibus como um bêbado que tenta se manter em pé. Oscilavam de lá para cá, do céu para o inferno. E entre os dois extremos, lá estava ela com seu corpo minúsculo, suas roupas ridículas, sua cabeça cheia de esperanças.
Será que me esqueci de trancar a porta? E a janela, meu deus, será que vai chover hoje e eu a deixei aberta? E se voltar tarde, já estiver escuro, será que vou ter dinheiro para pegar um táxi ou vou ter de ir a pé? Ultimamente ando tão esquecida... Será...
Fechou os olhos, tentou parar de pensar. Será verdade que havia gente que conseguia ficar sem pensar nada, absolutamente nada? Mentira, claro, tolice. Haverá sempre um clarão que acordará a consciência, um raio que iluminará o cérebro e porá tudo a perder.
Olhou para fora e viu que a paisagem mudava. O caos começava a tomar conta. Sinal de que estava chegando. Faltava pouco, agora. E isso era bom? Era ruim?
Não sabia. Não sabia de mais nada. A sua vida não estava mais em suas mãos. Tudo o que fazia hoje era cumprir um ritual determinado por outras pessoas mais sábias, mais preparadas. Um ritual que começava cedo, três vezes por semana e terminava tarde, no mesmo dia, quando chegava em casa, exausta, passando mal, com vontade de vomitar. Um ritual que era uma preparação para outro, mais cruel e do qual não poderia escapar.
Sorte, azar, felicidade passaram a ser apenas palavras que talvez pudessem ter algum significado para as outras pessoas. Não para ela. Não depois que numa manhã, terminado o banho, passou a mão pelos seios e notou, embaixo do direito, um caroço. Duro, feio, maligno.

Torcedor

O jogo acabara fazia muito tempo. Ele estava sozinho, sentado na arquibancada, a cabeça entre as mãos. Se alguém estivesse ao seu lado, veria que chorava baixinho.
As luzes dos refletores foram se apagando aos poucos, a grama sumia devagarinho, e ele não se movia.
Um ambulante que ia embora quase trombou com aquela figura minúscula.
– Ei, cê tá bom?
Ele levantou a cabeça, os olhos molhados de lágrimas, uma expressão de bobo.
Uma careta apareceu na face e ele percebeu que não estava sozinho.
– Hã, não, não sei, estava vendo o jogo... Quanto foi?
– Tá de gozação? Goleada. Perdemos feio.
Goleada... Tomamos uma goleada... E agora, meu Deus, o que vou fazer?
– Bom, posso ajudar a levar você pra fora. Cê tem certeza que tá bem?
– E quem marcou? Foi muito fácil pra eles?
Apoiado no ambulante, desceu os degraus, cambaleando. Já na rua, olhou para o estádio às suas costas diminuindo de tamanho e seguiu pela noite. Seus lábios se mexiam e só os insetos ouviam a frase que repetia sem parar:
Goleada, levamos uma goleada... E agora, o que vou fazer?