Álbum de fotografias


Baixinha, gordinha, meio vesga.
- Põe salto alto, vestido longo engana, não usa calça apertada nem roupa listrada.
Conselho se fosse bom não era de graça.
Fazia tudo ao contrário.Tinha seus encantos, ah, se tinha.
Ligou para o estúdio.
Sessão marcada, tomou táxi com ar-condicionado para não estragar a maquiagem.
- Quero posar nua - avisou.
Clique, clique, clique, de frente, de lado, deitada, em pé, boquinha fechada não entra mosquito, faz pose de vampira, de menininha, de puta. - Passa na terça que tá pronto.
Ai que foi difícil dormir de nervoso. As horas não andam, será que fiquei linda?
- Taí o seu álbum. Fiz o que pude. Melhor impossível.
Coração disparado, voou para a quitinete.
Era coisa de novela. De dar inveja. Para olhar toda noite.
Foto por foto, detalhe por detalhe.
Como a borboleta que tinha sumido do seio esquerdo e havia voado para o braço que não tinha mais a marca da vacina e estava mais fino que aquele refletido no espelho do guarda-roupa comprado em 24 prestações.
Chorou tanto que as lágrimas lavaram todas as mentiras expostas naquele álbum de fotografias.
Aí então viu que estava nua de verdade.

Prosa e verso para o amor eterno

Jurou por todos os santos que aquela era a mulher da sua vida.
Cortou o cabelo, aparou a barba, fez manicure. Gargarejou malvona para tirar o mau hálito. Treinou falar sem usar palavrão.
Mas o primeiro encontro foi um desastre. Nem lembrou de abrir a porta do fusqueta para a deusa. Viu que aquele pedaço tinha se magoado. Prometeu se emendar.
O segundo encontro foi melhor. A bonequinha adorou o maço de rosas brancas que entregou assim que a viu no jardinzinho da casa amarelo-pálido.
O terceiro encontro não aconteceu.
Se encantou por outra, essa sim pra todo sempre, tão loira que se confundia com suas manhãs tropicais de sol.
Mandou lavar o fusca, borrifou perfume até o cheiro do cigarro desaparecer, caprichou pra disfarçar o sotaque do interior que carregava forrrte.
Mas sabia que haveria um segundo encontro melhor que o primeiro, quando tudo correu bem até que escorregou nos errres e - foi mal, muito mal meu chapa!
Paixão que dura só um tanque de gasolina não é pra sempre.
Conheceu a mulher de seus tormentos logo a seguir.
O que era prosa virou poesia, de pé quebrado, uma porcaria.
Caiu de quatro, babou-se todo
feito um bobão.
E ela firme, não e não e não.
Passou a freqüentar terreiro,
fez promessa pra santo antonio casamenteiro,
tudo em vão.
O fusca quebrou, sobrou o buzão.
Ficou difícil, a mulher de sua vida
virou uma canção.
Um samba-canção, um bolero,
um roqueanderrou sem harmonia,
sem melodia e sem refrão.
Sobrou a rima,
perdeu o tesão.

Presente de casamento

A noiva telefonou para o noivo e contou a novidade:
- Ganhamos uma televisão de 29 polegadas dos meus pais. É linda. Você precisa ver. Vai ficar uma maravilha na sala.
O noivo, rapaz humilde, de família pobre, sentiu que falava agora ou nunca.
- Meus pais também já compraram o presente. É um liquidificador, de lâminas duplas...
A noiva disse apenas um "que bom". Desligaram o telefone, tinham muito a fazer, o casamento era dali a três dias.
Tiveram dois filhos em menos de quatro anos. Ele arranjou um bom emprego, trabalhava muito. Ela ficava em casa, cuidando das crianças.
Os filhos cresceram, entraram na faculdade. Ele subiu na firma. Ela ficou mais gorda.
Uma noite, no meio da novela, a televisão pifou.
- Tudo bem - disse ele - amanhã eu compro uma nova, de LCD.
O filho mais velho chegou logo depois e, todo sem jeito, anunciou que precisava falar com os dois.
- Fiz besteira, ela está grávida, vamos casar.
O pai ensaiou uma careta, a mãe chorou, mas no fim todos se conformaram.
Na loja do shopping, ele sacou o cartão de crédito e mandou entregar em casa a televisão. Foi aí que viu uma fileira de liquidificadores no balcão.
- Qual é o melhor? - perguntou ao vendedor.
- É esse de lâminas duplas - respondeu o rapaz.
Nem perguntou o preço. Só pediu que embrulhassem para presente.
Um presente de casamento.

Um anjo

Sempre foi a queridinha de todos. Criança ainda, quando brincava com os priminhos e priminhas, amiguinhos e amiguinhas da escola, era a primeira a socorrê-los quando algum deles se machucava.
– Tadinho, deixa que eu saro o dodói...
Cresceu, foi ficando moça e todos diziam que ela tinha um bom coração. Um enorme coração. Sempre prestativa, era só chamar que ela ia. Papai ficou doente, ela passou noites em claro, pois mamãe precisava descansar e o irmãozinho tinha de trabalhar. Duas semanas praticamente sem dormir, ali na cabeceira da cama. Deixou até mesmo de ir à escola. Os professores entenderam: estava cuidando do papai.
Era ótima aluna. Tomava nota de todas as aulas, com sua letra pequena, arredondada, quase perfeita. Os colegas a adoravam. Chegava ao cúmulo de passar cola para que o burrinho do lado não fosse reprovado.
Ia a festas, muitas festas. Porque era muito legal, os rapazes gostavam dela. Namorou duas vezes, mas os meninos no máximo deram uns beijinhos.
Conheceu um cara mais velho, começou a sair com ele. Percebeu que era diferente dos outros. No terceiro encontro, além do beijo, ele acariciou seus seios. Ficou envergonhada. Foi para casa, nem dormiu pensando naquilo. O namoro durou só dois meses.
Entrou na faculdade, conheceu gente diferente. Desmanchou o namoro. Viu rapazes e moças se drogarem, beberem, mas ela não era disso. Continuou sempre boazinha com todos. Saía com os novos amigos, fingia que se divertia, mas sabia que no fundo não havia sido feita para aquilo.
Formada, voltou para sua cidade, continuou a morar com os pais e o irmão. Arranjou emprego de professora. Os alunos gostavam dela.
O tempo passou, ficou mais velha. Ainda estava sempre disponível para ajudar quem quer que fosse, a qualquer hora. Tinha muitos amigos, mas se sentia sozinha. Os pais envelheciam rapidamente. O irmão ficava cada vez mais fora de casa.
A mãe morreu primeiro. Logo em seguida, foi o papai. Ficou triste, pensou em sair da casa, mas não teve coragem. Agora tinha de cuidar do irmãozinho.
Continuou sua vida, parecia que estava sempre alegre, ainda se encontrava com amigos. Arranjou um namorado, o primeiro em muitos anos. Carinhoso, bonito até, e ela achou que dessa vez tinha acertado. Foi pedida em casamento, ficou assustada. Mas aceitou.
A festa de casamento foi demais. Todos os parentes, os amigos, veio gente até da faculdade. Na noite da lua-de-mel percebeu o erro. Chorou, chegou até a gritar. Acabou pedindo a separação poucos meses depois. Achava que gostava muito dele para fazê-lo ainda mais infeliz.
A partir de então sua vida se resumiu em ajudar os outros. Passou a freqüentar associações de amparo a velhinhos, a criancinhas, a animais, a sem-teto, a órfãos. Ficou mais magra, os amigos e parentes se preocupavam, seu irmão, quando estava em casa, perguntava se ela estava se sentindo bem. Ela dizia que sim, que ele não se preocupasse.
Quando entrava em qualquer uma das associações que ajudava, tinha certeza que ouvia alguém falar, baixinho, para que não ouvisse:
– Ela é um anjo!
Nessa hora, seu coraçãozinho batia mais forte, mais rápido, e ela acreditava que era feliz.