Lencinho bordado

Na quinta-feira, ela estava por último na longa fila do ponto de ônibus.
- Oi, quer uma carona? Vou para a Zona Sul ...
- Tudo bem.
- Para mim não tem problema, é caminho. Comprei este carro há um mês. É quase novo. Flex. Dirijo bem. Gosta de música?
- Um pouco.
- Saio depois das 8 do serviço. Se quiser, amanhã pego você no ponto. Na mesma hora.
- Pode ser.
- É essa rua? Já chegamos? Quer que eu pare na frente do prédio?
- Legal.
- Então até amanhã.
- Tchau.
Na sexta-feira, estava no mesmo lugar na longa fila do ponto de ônibus.
- Prometi, cumpri. Vai entrando.
- Obrigada.
- Trouxe um CD para a gente escutar no caminho. Axé. É alegre. Anima.
- Eu sei.
- Pensei que você não fosse me esperar. Achei que ia ficar com medo. Tem tanto maluco solto hoje em dia.
- É mesmo.
- Quer sair comigo amanhã? Tipo ir ao cinema e depois comer alguma coisa.
- Vamos.
- Então eu pego você às sete.
- Combinado.
No sábado, choveu o dia todo. Às sete o tempo estava bom. Às sete e meia ela ainda estava em frente do prédio. Só saiu de lá às nove. Entrou no apartamento e foi direto para o quarto. Molhou todo o lencinho bordado de coraçõezinhos rosas com lágrimas sofridas.
Na segunda, estava no lugar de sempre na longa fila do ônibus.
- Desculpa. Tive um problema. Não sabia seu telefone. Me perdoa?
- Perdôo.
- Hoje eu trouxe pagode para a gente ouvir. É bom variar. Você quer namorar comigo?
- Quero.
- Para comemorar vamos ouvir música bem alto. E quero ganhar um beijo. Você tem uma boquinha linda. Sorte eu ter carro, não vai mais precisar pegar o ônibus. Mas por que você está chorando?
-Felicidade.
E enxugou com o lencinho de coraçõezinhos rosas ainda salgado das lágrimas de sábado as novas lágrimas da segunda-feira.

O gandula

Acabava o treino, o moleque de pernas finas pegava uma das bolas que havia escondido, esperava o pessoal ir embora, olhava para todos os cantos do estádio e cumpria uma espécie de ritual: pendurava uma camiseta no canto esquerdo da trave, colocava a bola no bico da grande área, se afastava uns cinco metros e pimba ...
Era difícil acertar na primeira. Tentava uma segunda vez e era quase sempre na terceira que via a camiseta balançar e a bola morrer na rede do gol.
Depois que acertava esse primeiro chute, trocava a posição da camiseta - ora no meio, ora no canto direito, ora embaixo da trave. Repetia com a mesma seriedade os mesmos gestos, os mesmos passos, a mesma corrida, a mesma expressão séria. Quando começava a escurecer, jogava a bola para seu esconderijo, pegava a camiseta toda suja e ia embora para sua casa - aquilo era uma casa?
Um dia, logo depois do craque do time ter dado nele uma dura por ter demorado a devolver a bola que havia chutado na porta de entrada do vestiário - "moleque folgado, corre logo que tamos aqui com pressa pra acabar essa porcaria de treino"-, ele se sentiu cansado, como nunca havia estado antes. Sentou-se e não resistiu àquela grama molhada, friazinha. Deve ter dormido, pois quando acordou viu que o sol estava caindo. Levantou-se depressa, pegou a camiseta e pendurou na trave. Catou a bola, se afastou os cinco metros de sempre e largou o chute. Na primeira! Não deu tempo de mudar a camiseta de lugar. Um apito chamou a sua atenção. Virou-se e deu de cara com o treinador.
- Moleque, amanhã você pega o uniforme com o Chiquinho, não precisa de chuteira ainda que você só vai jogar no coletivo no mês que vem. Mas é bom se preparar para suar bastante. Quero ver você puxando a fila. Você tem as pernas finas demais. Precisa ganhar músculo ....
O treinador então se virou e foi embora. O moleque ainda ouviu ele dizer, meio resmungando:
- Puta que pariu, de cada três ele acerta uma!

Superstição

Como em todo jogo do Coríntians que assistia pela televisão em casa, trancou a porta da sala, cerrou a cortina da janela, acendeu as sete velas e, antes do Galvão Bueno, foi ele quem narrou, olhos fechados, mãos levantadas para o céu:
- Bola com Magrão que dá para Marcelo que lança Sidney que chuta ... é GOOOLLL.
Depois, de joelhos, uma vela em cada mão, começou a dar as sete voltas costumeiras. Passou pela televisão e se preparava para completar a primeira quando a porta se abriu:
- Ah, meu bem, me desculpe, não sabia que hoje tinha jogo.
O vento que entrou com sua mulher apagou uma das velas. Soltou um palavrão. Tornou a acendê-la, mas sabia que era tarde demais.
Culpa sua o Timão perder mais uma.



O ascensorista

Um metro e vinte por um e trinta. Uma porcaria de espaço. Barulhento que nem ele só. E lento. E fedido.
- Quarto andar.
- Terceiro.
- Segundo.
- Quinto.
O gordo disfarça para eu não ver que ele está de olho na bunda da morena.
A secretária do doutor faz que não me conhece e bole na unha pintada de roxo.
Esse tampinha do quarto andar tem vergonha de tudo e só sabe ficar de cabeça baixa.
- Segundo andar.
Desce o gordo e dá uma última encarada na morena.
- Terceiro andar.
Sai a secretária e não olha para trás porque finge que não me conhece.
- Quarto andar.
Lá vai o tampinha de cabeça baixa feito bobo e é capaz dele tropeçar ... e tropeçou.
- Quinto andar.
Desfila sozinha a morena que não abre a boca e só mexe a bunda.
E eu vou atrás dela porque o corredor está vazio e eu sei que ela cobra cinqüentinha por uma trepada.
Êta ferro! Agora é no automático!

Rádio peão

– Ouvi dizer que o salário vai sair só no fim da outra semana.
– É que o banco não quer emprestar mais dinheiro.
– As vendas caíram muito e vão precisar cortar custos.
– E devem criar um conselho de acionistas.
– A verdade é que os sócios vão se afastar da direção.
– Vão contratar uma empresa para fazer as mudanças.
– Um ano e meio a dois para ajeitar tudo.
– No fim das contas vai sobrar para nós.
– É, já vi esse filme antes.
– Vamos tomar um cafezinho?
– Com açúcar ou adoçante?

Mentiroso

Desde cedo revelou sua vocação: mentir. Criança ainda, quando a mãe perguntava onde tinha ido, só para sentir aquele friozinho na barriga, não dizia que estivera a tarde toda brincando na casa do vizinho. Dizia que fora lá estudar. Uma mentirinha de nada, mas que dava prazer enorme de contar.
Cresceu assim, mentindo um pouco para uns, muito para outros, sempre para todo mundo. No ginásio, dizia que queria ser médico. No colegial, já era jornalista. Formou-se em Direito. Virou advogado. De família conhecida, fez nome, passou a ser respeitado. Escrevia nos jornais da cidade, dava aulas na faculdade. Quase virou político.
Namorava uma moça fazia tempo. Mas a moça ficou barriguda. Foi um Deus nos guarde. As comadres se encheram de falar.
Mas ele nem nada. Quando encontrava um amigo, ia logo contando a história:
– Ela está grávida, mas é virgem. Nunca vi isso.
E essa foi a maior mentira de todas.

Bola pra frente

- O mundo não é redondo. Ele é uma bola de futebol!
Saiu do bar rindo, tropeçando no degrau que dava para a calçada.
- O jogo só acaba quando o juiz apita!
Tentou duas vezes abrir a porta do carro. Não acertava o buraco da fechadura.
Estava escuro, começou a chover, queria mijar.
- Bola pro alto que o jogo é de campeonato!
Ligou o carro, acelerou, engrenou primeira, saiu cantando pneu.
Xingou o gato preto que cruzou a luz do farol.
- O futebol é uma caixinha de surpresas!
Parou o carro em cima da calçada.
A luz da casa estava apagada.
Tentou entrar sem fazer barulho.
Chutou o abajur da sala.
Acendeu a luz e viu na mesa o bilhete pardo:
"Adeus. Levei as crianças e o talão de cheques."
Caiu sentado no sofá de couro.
- E fecham-se as cortinas do espetáculo!

Uma rosa vermelha

A igreja estava lotada, mas fedia incenso e flores. As luzes ardiam nos olhos de tão fortes. O padre falava e ninguém escutava.
Essa menina eu conheço bem, não vale nada.
Vagabunda é o que ela é.
Mas vai se arrepender de casar com esse cara, um zé mané.
O som do órgão até que lembrava uma música. O burburinho que vinha da porta atrapalhava quem queria ouvir o padre avisar que a vida nova que começava para os noivos exigia muita responsabilidade e tal e tal e tal.
Quero ver depois se ela vai ter coragem de olhar pra mim.
Quero ver depois se ela vai ter coragem de olhar praquele trouxa do marido e dizer que gosta dele como gostava de mim.
Quero ver depois se ela vai ter coragem de olhar no espelho e dizer que fez o certo.
A cerimônia acabou, finalmente. Os noivos foram andando, devagar, sorrindo, lindos, em direção à porta de entrada da igreja.
Pararam ao lado, a fila de cumprimentos foi ficando cada vez maior.
Um beijo, outro beijo. Muitos beijos.
Um estrondo. Um grito, outros gritos.
A menina virou para a mãe e só soube dizer:
- Olha mamãe, brotou uma rosa vermelha no peito da noiva.