Maldades

Papai chegou em casa, jogou o paletó no sofá, abriu a geladeira e gritou:
- Não tem cerveja, assim não dá!
Mamãe quis falar alguma coisa, mas papai foi mais rápido:
- Nem para comprar uma cerveja você presta!
Mamãe virou-se, saiu da cozinha, entrou na sala e viu o filhinho pegar o bolinho de arroz da tigela verde com a mão direita.
- Moleque porco. Quantas vezes eu já disse para usar a colher!
E paft na cabeça do filhinho, que saiu meio chorando, meio resmungando da mesa e foi para o quarto.

Lá, antes de se jogar na cama, filhinho vingou-se de mamãe arrancando a cabeça da boneca que estava na mão da irmãzinha.
Ritinha não podia fazer nada contra o irmão grandão. E quando foi pegar a cabecinha estraçalhada no corredor, chutou Biluca, o vira-lata da família.
Biluca sentiu dor - era um cachorrinho de nada - e achou melhor ir para debaixo da escada.
Que era um lugar escuro, frio e cheio de pó.

Um ótimo esconderijo.



Vernissage

Aproveitou que o garçom estava perto e pegou mais um uísque. Virou-se, viu uma bandeja com salgadinhos passar ao lado e zapt! - livrou-a de dois canudinhos de camarão. Estavam deliciosos.
Enquanto isso, no burburinho da grande sala mal e mal se notava o artista, camuflado entre convidados tagarelas. Seus quadros pareciam esquecidos nas frias paredes brancas. Um, em particular, estava de tal forma perdido lá no fundo, pequenino entre uma enorme natureza morta vermelha-verde e um nu escandaloso violeta-creme, que tinha tudo para se sentir o filho enjeitado de um pai magnânino.
O vinho tinto acompanhava divinamente a coxinha recheada com requeijão, mas talvez fosse hora de comer mais uma empadinha de palmito.
E, no exato momento em que se preparava para decidir a continuação de uma noite muito agradável foi que acabou reparando naquele patinho feio espremido entre dois portentos. Um quadrinho assim tristonho e pálido não fazia jus àquela miríade de obras-primas.
Chegou mais perto da esquálida aberração. Ao tentar ajeitar o óculos para assegurar que a assinatura naquela insignificância era a mesma que adornava toda a beleza em redor, atrapalhou-se e um tantinho do líquido rubro saltou da taça para a tela já conspurcada de cores que não combinavam entre si. Sacou rapidamente o lenço e sem pensar em nada a não ser restaurar a antiga mediocridade daquela paisagem insípida, fez a descoberta que estragou o gosto dos canapés tão excelentes que haviam caído em seu estômago: a estampazinha era um óleo recém-acabado, talvez a derradeira obra, feita às pressas, que o artista tinha preparado para sua exposição.
Mais tarde, quando a algaravia já havia se dissipado, uns poucos convidados mais atentos elogiaram a audácia do pintor de expressar seus sentimentos em cores tão fortes e traços tão distorcidos. Alguém chegou a apontar o retângulo borrado vítima do atentado dionisíaco como exemplo acabado da maestria.
No dia seguinte, apesar da ressaca, com a cabeça ainda doendo e o estômago embrulhado (aquele maldito canudinho de camarão!), sentiu uma ponta de orgulho por ter dado uma pequena e despretensiosa contribuição para a arte moderna.

Demais

Gracinha, lindinha, corpo magrinho-magrinho. Feita para brilhar. Rostinho de anjo, boquinha perfeita, cabelos loiros, lisos, leves.
Adoro um clique clique e passinhos-passinhos pelas passarelas, andar marcial, rostinho reto, olhar em frente que o mundo é o limite para os meus sonhos dourados.
Que é que é que eu tenho demais?
Linda, linda, sou linda demais.
Fotografo de dia e de noite me desmancho em tititis e tantos ais e não-me-toques mais menina
eu sou demais.
Durmo demais que a vida não me espera nem me cabe.
Ah! Eu me amo demais!
Espero uma fera que me possua como na capa da revista nua e crua.
Um dia serei tanto faz menina ou meretriz
- o que me importa é ser feliz!
artista de novela moça do tempo jornalista garota de programa ou atriz
tanto faz -
uma gracinha trancinhas loiras meu primeiro beijo meus primeiros versos
já fui linda demais.
- Menina, acabe logo essa maquiagem que o show já vai começar.