Carta de amor

Amor,
não sei se, tantos anos depois, ainda a odeio. Creio que sim. Sinto isso quando, no meio da noite acordo de algum sonho estranho e fico ouvindo os barulhos da rua. Sinto isso quando, no meio desta insônia, recordo que, certa época, fui muito feliz com você.
Hoje, quero matá-la. Sei que não deveria confessar isso, mas como deixar de sentir tanto ódio, mesmo passado esse tempo todo?
Amor,
não sei se todos esses anos serviram para esquecê-la ou para trazê-la mais perto de mim. Acho que nunca, nem mesmo nos loucos momentos em que tentamos desesperadamente nos entender, eu estive tão próximo de você quanto agora. Sinto isso em cada carro que freia nesta madrugada maldita, em cada cão que late neste sórdido escuro, em cada estalo da madeira que meus sensíveis ouvidos detectam neste imenso e cru espaço que habito.
Amor,
é estranho escrever tais palavras me referindo a alguém que hoje desprezo com o mais profundo ímpeto, mas creio que não existe outra forma de registrar sua imagem, essa melíflua, ondeante, imprecisa forma que meu cérebro ainda retém, fantasma indecoroso que habita meus piores pesadelos.
Amor,
não sei se apesar de todos os enganos por que passamos, de todas as mentiras que contamos um ao outro, de todas as indiferenças que tivemos a necessidade de expressar pelas maneiras mais abjetas, de todos os gritos que demos e de todas as horas trancafiados na imensidão de nossas justíssimas desavenças, não sei se ainda devo continuar a tê-la como parte de mim, indissolúvel e irremediável.
Quer dizer, eu sei.
Sei, mas não tenho a coragem de admitir. Na minha fraqueza, na minha total covardia, eu me calo.
Amor,
mais difícil do que começar a amá-la, foi aprender a odiá-la.
É muito tarde para uma reconciliação. Prefiro esperar que minha vida termine em paz do que continuar desta maneira, na iminência de descobrir que nós ainda existimos.
Amor,
quero que pelo menos desta vez você finja fazer parte da humanidade e me perdoe.
Juro que não pretendi, em nenhum momento de nossa insana e conturbada relação, ferí-la. E se eu o fiz, creia, foi com a mais deliberada intenção.
Amor,
nunca mais quero vê-la. E antes que você venha novamente me ignorar, fique certa que desta última vez, sou eu quem vai virar as costas e fingir indiferença.
Pois desta vez vou rir por último. Tanto que vou acordar velhos e crianças, alegres e desesperados, brancos e negros, todas as contradições que habitam a minha rua, a minha cidade, o meu país, o meu mundo.
Vou rir tanto que vou morrer de rir.
Amor,
eu tenho um coração imenso e uma saudade infinda.
E eu choro, eu choro, eu choro essa dor que é minha vida.
Um beijo.
Do sempre seu odiado
amor.

Nenhum comentário: