DUAS CARAS



Do lado direito era feio, duro e implacável.
Do lado esquerdo contrariava a lógica e se sentia humano.
No primeiro passo esmagava qualquer vida que se pusesse à frente.
No segundo, ultrapassava os limites e chegava a flutuar.
O primeiro gole queimava.
O segundo aplacava o fogo.
No espelho, o que via era só um rosto.
No travesseiro, fechava os olhos e sonhava com anjos.
Era certo de dia
e errado de noite.
Sentia a alegria dos palhaços
e a tristeza dos desenganados.
Passeava por praias, montanhas, estradas sem fim e cidades encantadas.
Trancava-se no sótão escuro habitado por fantasmas ancestrais.
Comia e bebia com prazer.
Maltratava seu corpo com a tortura da sede e da fome.
Corria.
Parava.
Subia.
Descia.
Se fosse preciso calaria as injustiças do mundo com sua voz embargada de emoção e fúria.
Mas nunca faria nada que pusesse em risco sua tranqüila e segura concordância com tudo.
Num certo dia de sol, depois de se mover solto e leve pela praça que separava sua casa da estação do metrô, foi subitamente abordado por dois pivetes que
primeiro deram um murro no seu estômago,
depois chutaram suas costelas quando estava no chão
e, por fim, saíram rindo como se nada tivesse acontecido, levando sua carteira com 150 mangos, cartões de crédito e débito, documentos e outras coisas de menor importância.
Foi aí que quis rir,
mas apenas chorou.



PORRADA


Era ruim de pequeno. 
Botava fogo em gato, cortava rabo de lagartixa, maltratava o irmão menor e chutava a perna da mãe quando ela lhe dava umas palmadas.
Grande, sempre que podia, continuava com as maldades.
Passava com seu carrão por debaixo de um viaduto quando viu dois sujeitos mulambentos deitados debaixo de um cobertor imundo.
Parou o carro, desceu e foi falando:
- Olha aqui, uma nota de cem reais para quem ganhar uma luta entre os dois. É vale-tudo mesmo, quero ver sangue.
Os dois se olharam, se levantaram, foram se chegando meio desconfiados e, quando estavam bem pertos, encheram o playboizinho de porrada.
Ele ficou no chão, sangrando e gemendo.
Perdeu a nota de cem, a carteira com mais 250, todos os documentos e, é claro, o carrão preto quase novo, que só viu arrancar num tranco e sumir na avenida longa e deserta.



TELEFONE SEM FIO


- Você viu? A mulher do patrão entrou na sala dele e saiu de lá na maior pressa...
- ...Saiu de lá chorando à beça...
- ...Parece que o filho deles foi pego fumando um cigarro...
- ...Com maconha no carro...
-...Resolveram tirar um mês de férias...
- ...O garoto vai ficar com uma tia...
- ...Numa casa completamente vazia...
- Tenho tanta pena dessa família!