Festa de confraternização

- Bete, quanto tempo! E mais bonita que nunca...
- Jorge, que surpresa! Você ainda mais charmoso...
Há 20 anos não se viam e lá estavam os dois naquela festa de confraternização da turma de 198... da faculdade.
Bete, gorda, a pele do pescoço flácida, o cabelo loiro palha com pontas quebradas, esmalte roxo, sapato com plataforma altissima.
Jorge, careca, óculos de aro grosso, tique nervoso, barriga saliente, camisa aberta até o meio do peito peludo.
- O que anda fazendo?
- Ah, nada tão emocionante quanto você. Sabe, casei com o Mário, tenho dois filhos, não dá para trabalhar. É a vida de dona de casa..
- Vidão, hein.. Mas você está mesmo ótima, não mudou quase nada. Eu é que estou um trapo, todo escangalhado...
- Bobagem. Aposto que suas alunas não param de dar em cima de você...
- Nem fale uma coisa dessas. Se minha mulher escutar, estou perdido.
A luz do salão de festas piscou antes de apagar de vez. Bete se assustou, deu um passo para trás, quase derrubou uma mesa. Jorge foi em seu socorro e segurou sua mão. Ainda era macia.
Bete gostou do toque e fez pressão no dedo médio de Jorge, que, por sua vez, sentiu o rosto ficar vermelho. Mas estava escuro, tudo bem. Chegou mais perto de Bete, passou o braço por trás de sua cintura e a trouxe para junto de si. Beijou-a. Voltou àquela festa da faculdade, 20 e tantos anos atrás.
Os dois se separaram quando a luz voltou. Bete se virou para apanhar um copo na mesa, Jorge ficou parado, o olhar fixo na mulher que não reconhecia mais.
O garçom passou oferecendo bebidas e salgadinhos.
O microfone estalou um alô alô amplificado e rachado. Bete acenou para a grande amiga Cris que acabava de entrar no salão e largou Jorge naquele canto a remoer lembranças.

No caminho de volta para casa, ele se perguntou porque o tempo existia.
Não obtendo resposta, foi até a padaria, comprou pãezinhos para o café da manhã do dia seguinte e um litro de suco de laranja.

Tinha quase certeza de que ia acordar com dor de cabeça.

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Grife

Parada no semáforo, ela olhava o Audi prateado da fila à direita. Viu as horas no Cartier no pulso esquerdo e percebeu que se o trânsito continuasse ruim como estava acabaria perdendo o horário que havia reservado no Soho. Abriu a bolsa Gucci jogada no chão, à frente do banco do carona (imagine que iria deixá-la à vista com tantos marginais soltos por aí!), e conferiu na carteira Burberry de tonalidade vermelha seu cartão Personnalité. Achava que podia tê-lo esquecido no apartamento.
Distraída um instante por uma buzina aguda que vinha do lado direito, tirou o Prada número 38 que calçava do pedal de freio e por um daqueles azares da vida que até então desconhecia, acabou voltando o pé direito ao acelerador. Assustou-se com o barulho do motor, acionado repentinamente a mais de 5 mil rpms, e soltou a embreagem. O BMW preto deu um pulo à frente como um touro selvagem.
O moleque pardo magricela que fazia malabarismos levou o coice nas pernas. Quando sua cabeça bateu no asfalto, um filete de sangue escorreu quase instantaneamente.
Mas ele era um sobrevivente. Apesar de gemer bastante, comportou-se direitinho e aguardou imóvel a chegada da ambulância.
O BMW ficou na calçada, praticamente sem nenhum dano. Os policiais foram gentis com a sua dona. Ela chorou muito e foi bem tratada pelo escrivão. O advogado da empresa do marido também foi muito solícito.
A ambulância demorou mais de uma hora para chegar. Muita gente que passava pelo cruzamento diminuía a marcha para olhar a cena do moleque magricelo estendido no chão, cercado por quatro policiais.
O motorista da ambulância e seu ajudante - talvez um enfermeiro - levantaram o moleque sem muito cuidado para colocá-lo na maca.
Foi o motorista que fechou a porta traseira da ambulância. Fechou sem cuidado, com a mão direita, batendo forte. Na mão esquerda segurava um par de tênis.
Nike.
Quase novo.