No sebo

- Olha só este disco. Dancei muito com essa música. Deixa ver, em 1978, 79...
- E este livro, então... Leitura obrigatória no ginásio. Ninguém conhece mais hoje em dia.
Como criança, percorria as estantes do sebo. As mãos já estavam pretas da sujeira das capas dos livros e discos. Mas os olhos cada vez mais brilhantes. Ao seu lado, o filho tentava se distrair num joguinho de gameboy.
- Pai, vamos embora, tô com vontade de fazer cocô.
- Já vai, já vai. Meu Deus, não acredito... Dei este LP de presente para sua mãe, quando a gente namorava. Que saudade! Você precisava ver, eu tinha um cabelo que vinha até aqui, ó...
O menino torceu o pescoço, passou a mão direita pela cabeça, olhou o pai de baixo para cima.
- Puxa como você é velho!
O passeio terminou num McDonald's que ficava numa praça desolada e suja, ao lado de uma avenida barulhenta e perigosa.

As cartas não mentem jamais

"Leio mãos - R$ 10
Tarô - 10 perguntas R$ 10,
20 perguntas R$ 15
Jogo búzios - R$ 10
Leio o destino nas cartas - R$ 15
Sucesso garantido - Vidente Nádia"
O cartaz estava pendurado numa mesa e a vidente Nádia era uma senhora de cabelos loiros oxigenados, de idade indefinida, que lia uma revista Caras na falta de clientes naquela feirinha de domingo do shopping do bairro.
Como a próxima sessão de cinema só começava em 40 minutos, Celinha achou que seria um bom investimento saber o que o futuro reservava a ela, 19 anos, cabecinha cheia de sonhos, e, na bolsa que levava a tiracolo, R$ 60 em notas de R$ 10 e R$ 5 amassadas e misturadas com bilhetes de ônibus, tíquetes-refeição e um recorte de jornal que anunciava a vaga de secretária numa clínica dentária. "Não é preciso experiência", dizia o texto.
Celinha, que não gostava de intimidades, e por isso não ia deixar que uma estranha pegasse em sua mão, preferiu que a vidente Nádia lesse as cartas. Não sabia direito o que era tarô e achava búzios coisa de umbanda. O pastor de sua igreja falava sempre que essa gente não prestava.
Contente em ter sua primeira cliente do dia, a vidente Nádia prometeu a si mesma caprichar na leitura. Simpatizou com a moça morena, de olhos verdes e tímida, e improvisou um futuro belo, tranqüilo, sem nuvens e de um azul profundo para ela.
Quando terminou o serviço, a vidente Nádia pegou novamente a revista Caras da semana passada e voltou a ver as fotos da casa de praia de 400 metros quadrados do seu galã preferido, graças a Deus solteiro novamente.
Já Celinha hesitava entre passar os restantes 20 minutos para a sessão de cinema procurando uma blusa que combinasse com a calça comprada à prestação na semana passada ou chupando um sorvete. Acabou se entretendo com a criançada que patinava na pista de gelo montada no espaço onde antes ficavam as máquinas de fliperama. Se tivesse coragem, bem que gostaria de experimentar. Mas era envergonhada. Se levasse um tombo, todo mundo iria rir e ela, corar feito um pimentão.
Ao se virar para finalmente pegar a fila do cinema - puxa, como o tempo passa rápido -, Celinha levou um susto: três rapazes, a poucos metros dela, a olhavam, rindo. Ela fez que não viu, baixou os olhos e apressou o passo. Mas ouviu um deles falar: "Bonitinha, uma gracinha..."
Deu a entrada para o bilheteiro e olhou rapidamente para trás. O rapaz mais alto dos três, um mulato vestindo uma camiseta cinza com a frase "In God We Trust" escrita em vermelho, estava na bilheteria.
Ela então se lembrou das palavras da vidente Nádia quando virou o valete de ouros e abriu um sorriso que deixava à mostra dentes amarelecidos de nicotina: "Menina, essa é uma carta muito boa, que significa reflexão, novidade e amor."
Não tinha entendido na hora o sentido daquilo, mas ao ver o jovem galanteador entrar na sala meio escura apressado e olhando para os lados, como se estivesse à procura de alguém, soube imediatamente que seu destino estava traçado havia muito tempo e seria decidido ali, naqueles 114 minutos de duração do filme sentimental e tolo que decidira assistir.
Uma pequena lágrima saiu de seus olhos e escorreu, cada vez mais fria devido ao ar-condicionado que chiava à toda, pelo seu rosto moreno.
Célia Brito da Silva, a Celinha, filha mais nova do seu Edgar e da dona Joana, que o Céu a tenha, encheu a boca de pipoca e nem se importou quando, ao morder um piruá, sentiu um dente se quebrar.
Bobagem, amanhã mesmo estaria empregada como recepcionista de um dentista daqueles bem chiques e seu novo namorado teria o maior prazer em pagar aquela obturação.
As cartas não mentem jamais.