Amigo de infância

Foi a última garfada do almoço. Estava cheio e se preparava para tomar o resto de chope quando sentiu um tapa nas costas. Virou-se e deu de cara com um estranho, barbado, óculos escuros, camiseta preta, jeans e tênis velhos.
- Mário, meu velho amigo Mário, é você mesmo, não? - disse o estranho.

- Isso, claro, sou, mas, você é o...o...
- Será que mudei tanto? Não se lembra mais dos amigos. Sou o Sérgio, o Serginho, seu vizinho da Rua Estreita.
- Serginho... mas é claro! Quanto tempo, você de barba... Quando foi a última vez que nos encontramos? Deixa me lembrar... Foi no alistamento do exército, tenho certeza!

- Isso mesmo. Eu servi, você não. E depois perdemos o contato. Mas eu reconheci você na hora. Só está um pouco mais gordo.
- Também, pudera. Nos vimos já faz uns 15 anos. Mas sente aí e me conte o que você anda fazendo.
- Ah, uma coisinha e outra. Sabe, eu parei de estudar logo depois que terminei o segundo grau. Precisei trabalhar depois que papai morreu.
- É eu soube. Uma pena. Ele era um cara legal.
- E aí eu fui fazendo uma coisa e depois outra e fui me virando. Mas nem precisa me falar de você que eu sei que você hoje é um advogado de primeira, casou e tem três filhos...
- Pôxa, você está bem informado...
- É, leio jornal, converso com as pessoas, sabe, eu circulo muito.
- E você, casou? Tem filhos?

- É, fiquei um tempo com uma, um tempo com outra. Mulher é complicado, filho, então, nem fala.
- Mas agora você está mais tranqüilo, mais assentado, não é?
- Estou e não estou. Depende das circunstâncias.
- Mas tirando a barba, você não mudou nada, Serginho. Está até mais magro.
- Deixei crescer faz uns três meses, sabe, para mudar um pouco o visual, estava meio cansado do look antigo. E também estava mais gordo, fiz um regimezinho e perdi uns quilos. Estou pensando até em malhar um pouco.
- Pois é, Serginho, antes de você chegar eu estava me preparando para ir embora. A Sílvia, minha mulher, foi para o Rio neste fim de semana com as crianças e eu preciso ir pegá-la no aeroporto às 3 horas. Estou meio com pressa.
- Não tem problema. Eu só pensei em dar um alô para você, eu meio que estava passando por aqui e vi você sentado e coisa e tal.
- Então, Serginho, eu acho que vou me despedir. Vou passar no caixa para acertar o meu almoço, o dono do restaurante é meu cliente e faz questão de que eu não pague, mas não gosto de explorar ninguém.
- Certo, Mário, certo... Então, tchau, a gente se vê por aí qualquer dia, estou sempre circulando.

- Isso, Serginho, isso. Até mais, então.
E se levantou e foi ao caixa, sem olhar para trás. Serginho ficou mais alguns minutos na mesa. Antes que o garçom a limpasse, tomou a meia tulipa de chope quente que o amigo de infância havia deixado e comeu a metade do filé frio que dormia no prato.
Foi embora também sem olhar para trás.