QUARTETO DE CORDAS


O quarteto sempre havia se dado bem.
Até o dia em que o segundo violino esticou a corda demais - o primeiro violino achou aquilo um insulto.
A viola se incomodou e entrou na discussão: reclamou uma autoridade que foi contestada pelo grave violoncelo.
No meio da sonata o pau quebrou feio.
E não houve Brahms que desse jeito nem Beethoven que consertasse o estrago ou Mozart que restabelecesse a ordem.
A paz chegou apenas quando baixou um Pixinguinha com seu jeito manso de insinuar a melodia e sua maestria em prever o tempo certo para qualquer compasso.
Ou seja, o recital teve um fim imprevisto, mas satisfatório.
E todos voltaram felizes para casa.
Menos o piano, que permaneceu mudo, porque não tinha nada a ver com aquela confusão toda.




GIGANTE

Baixinho, tampinha, nanico, meia dose, chaveirinho, goleiro de pebolim, pintor de rodapé, piloto de autorama, caçador de lagartixa, amostra grátis, salva-vidas de aquário, maquinista de ferrorama .
Ouviu isso a vida inteira. Às vezes ria. Depois chorava de raiva. Mas aguentou calado. Os anos se passaram, subiu na vida. Era pequeno, mas importante. Estudou, deu duro, trabalhou feito um burro (ops, um burrinho), foi duro com os amigos (poucos), fez inimigos (muitos) e hoje sabia que era invejado.
Apesar do metro e meio de altura.
E, mais que invejado, respeitado.
Por isso estava orgulhoso de ter sido convidado para a cerimônia de assinatura do contrato da firma em que trabalhava com aquela multinacional poderosa, distante, fria e exigente. Contrato que tinha redigido, modificado, corrigido, linha por linha, palavra por palavra, vírgula por vírgula. Um triunfo que atingia, naquele momento, seu auge.
- Com a palavra, agora, o dr. Gilmar Pereira, diretor-presidente da Pereira Edificações. Palmas merecidas.
Os fotógrafos e cinegrafistas se atropelaram na busca do melhor ângulo.
- Senhoras e senhores, é com muita satisfação que recebo cada um de vocês nesta humilde casa para anunciar que fechamos o contrato para a construção do maior empreendimento imobiliário de nossa cidade, com nada mais nada menos que a Empire Investments. Todos os detalhes do negócio serão dados posteriormente pelo nosso diretor-financeiro, o dr. José Ribeiro. Quero também, neste momento, agradecer ao nosso diretor-jurídico, o dr. Bráulio Gimenez, que empreendeu uma tarefa hercúlea, à altura de seu enorme, imenso, gigantesco talento...
O que se seguiu depois teve várias versões. Mas ficou mesmo a que saiu no Jornal de Notícias: "A determinada altura do discurso do diretor-presidente da empresa, justamente na parte em que era elogiado pelo seu 'enorme, imenso, gigantesco talento', o diretor-jurídico, dr. Bráulio Gimenez, começou a xingar o seu patrão, entre outros palavrões impublicáveis, com gritos de 'filho da p..., gigante é a mãe', antes de agredí-lo com chutes e socos e ser, finalmente, contido e dominado pelos seguranças."
O estilo pode ser ruim, mas a descrição foi fiel aos fatos.
O jornal fez ainda a ressalva de que o dr. Bráulio Gimenez, justamente devido aos meses de trabalho exaustivo que tivera para concluir o contrato com a Empire Investments, havia sido vítima de um colapso nervoso.
Informou também que ele estava tomando uma medicação muito forte, "capaz de reações imprevistas se adicionada a bebidas alcoólicas", como explicou seu médico particular, o dr. Bento José Dias.
E testemunhas juram que viram o dr. Bráulio Gimenez pedir pelo menos três doses de uísque no coquetel que antecedeu o discurso do patrão.
"E doses duplas, que derrubariam até um homem de tamanho normal", disse um dos convidados ao repórter do Jornal de Notícias.



A FONTE DA JUVENTUDE


Quando notou que os cabelos negros de sua mulher estavam mais bonitos com o tom prateado que haviam adquirido nos últimos anos, tomou a decisão de não procurar mais saber, diariamente, na frente do espelho, com os olhos míopes arregalados, se a barba estava ficando mais branca.
Percebeu que essas mudanças não eram apenas exteriores.
Sentia o coração leve, a alma solta, o espírito em paz.
E, assim, abandonou definitivamente qualquer esperança de se tornar eternamente jovem.




ZÁS-TRÁS



Era pretinho, ficava nos cantos quieto, medroso, à espera da oportunidade, à mercê do desejo, da fome, os olhos brilhando como tições, o nariz caçando odores, a língua uma lixa seca, as garras recolhidas, prontas para virar punhais.
Era pequeno, pretinho, quieto.
Nos cantos, quieto.
Até que um descuidado pardal desceu do galho e foi, inocente, bicar um pedacinho de pão mal varrido perto da porta da cozinha.
Bastou um segundo.
Um zás, um trás, um pulo no pátio inundado de sol.
E foi o bote de uma pantera, negra, imponente, inundada de sol.
Era pretinho, quieto, pequeno.



SEQUESTRO POR TELEFONE


- Alô, é o Celso? Quero falar com o Celso.
-É ele, pode falar.
- O senhor ama a sua filha?
- Não tenho filha.
- Mas o senhor ama a sua filha?
- Já falei que não tenho filha.
- Ah, não? Mas, bem, o senhor ama a sua mulher?
- Claro, estou casado com ela há 20 anos.
- E não tem filha?
- Nem filho. E daí? Afinal, o que o senhor quer?
- É sobre a sua mulher...
- O que tem a minha mulher?
- O senhor ama a sua mulher?
- O senhor já me perguntou isso.
- É que nós estamos com a sua mulher.
- Nós quem?
- Ah, isso eu não posso falar.
- Então vou ter de desligar. Não sei quem é o senhor nem o que quer.
- É sobre a sua mulher...
- Mas que é que tem a minha mulher?
- Nós estamos com ela e se o senhor a ama...
- Mas que raio de história é essa de eu amar a minha mulher?
- Não, veja, se o senhor a ama... É que nós estamos com ela...
- E daí? Ela pode ficar com quem quiser. É minha mulher, mas pouco me importa quem são seus amigos.
- Mas nós não somos amigos dela.
- E não me importa quem são seus inimigos.
- É que estamos com sua mulher e se o senhor a ama e a quiser de volta, vai ter de pagar para nós dez mil reais.
- Pagar para ter a minha mulher de volta? Mas o que é isso?
- O senhor não entendeu? Nós seqüestramos a sua mulher e se o senhor quiser ter ela de volta, vai ter de pagar...
- Dez mil reais? A minha mulher vale dez mil reais? Nem eu valho isso.
- Bom, pode ser menos. Oito mil.
- Nem cinco, nem mil. Para que eu vou querer pagar pela minha mulher? Pago todo dia para ela. Quem é que trabalha aqui nesta casa? É ela? Não senhor, sou eu. Ela só sabe gastar.
- Mas se o senhor ama a sua mulher, vai ter de pagar.
- O senhor respeite a minha mulher. Pagar uma ova. O senhor acha que ela é uma prostituta?
- Não, não disse isso. Só que queremos dez, não, cinco mil reais para soltar a sua mulher, senão...
- O quê? Soltar? Como? Ela está presa? Aprontou alguma? Roubou, matou? Bateu o carro? Estava bêbada?
- Não, não... É que nós a seqüestramos...
- E ela não fez nada? Ficou quieta? Como foi isso? Quero falar com ela agora para resolver esse assunto. Passe já o telefone para ela.
- Mas não é assim que funciona. Não posso deixar o senhor falar com ela. Mas ela está bem.
- Mas é claro que está bem. Não trabalha, gasta o meu dinheiro, vive fofocando com as amigas, não limpa a casa, cozinha com uma má vontade que dá dó e o senhor queria que ela estivesse doente? Que estivesse Cansada? Claro que não. Está é gorda, desmazelada.
- Então, se o senhor quiser que ela volte, vai ter de pagar cinco mil...
- De novo? Como vou ter pagar para ter a minha mulher? Isso é um absurdo! Nem um centavo, nada.
- Mas se o senhor não pagar, nós vamos ter de dar um sumiço nela.
- Como se isso fosse fácil... O senhor diz isso porque não conhece a minha mulher. O senhor não acha que eu já quis sumir com ela umas mil vezes? E sabe o que consegui? Sabe? Ela não larga mais do meu pé, só vive para me encher, faça isso, faça aquilo, não coma isso, não beba aquilo... Um inferno.
- E como nós vamos resolver o assunto?
- Por mim está resolvido. Se o senhor sumir com ela será ótimo para mim que fico livre dela e não gasto mais nada.
- Mas assim nós vamos ficar no prejuízo.
- E eu que estou faz 20 anos no prejuízo? Isso não conta?
- Mas não está certo, não é assim que funciona. O senhor tem de pagar.
- Não pago e além disso mando a conta do que ela gastou este mês com o meu cartão de crédito para o senhor. Qual é o seu endereço, por favor?
- O meu ende... O senhor está louco?
- Faz tempo que estou, casado com essa mulher qualquer um fica louco. O endereço, o CIC e o RG, por favor que eu não quero mais perder meu tempo.
- Não vou dar endereço nem nada. O senhor não sabe que esse negócio de passar números pelo telefone para estranhos é perigoso, que está cheio de malandro e vigarista por aí?
- Se é assim, então vou ter de desligar.
- Tá bom, então até logo.
- Passe bem. E diga para minha mulher vir logo para casa.
- Pode deixar. Será um prazer. Um bom dia para o senhor.

- E para o senhor também.
Fim da ligação.




É CAMPEÃO!

- E goool!!!
Batido o último e definitivo pênalti, Romualdo gritou, pulou, cantou e saiu do estádio com a multidão de torcedores inebriados.
Entrou no carro, engatou a primeira, a segunda, a terceira e quando viu, estava no meio do trânsito buzinando e buzinando ao ritmo do "é campeão!" que ouvia dos alucinados passantes vestindo a camisa branco e preta de seu time, seu amor, sua vida.
Mas a comemoração não podia parar aí. Precisava de mais, muito mais. Quando viu o quarteto de colegas do trabalho sambando na calçada, não teve dúvida, quase os atropelou para depois convidá-los:
- Vamos beber que o Timão merece!
E foram os cinco para o boteco mais perto que encontraram. Nada de cerveja, nem cachaça. Uísque à vontade.
Depois de deixar os quatro no ponto de ônibus, calibrado por cinco doses de Passport, seguiu para casa, ainda buzinando.
Largou o carro na rua mesmo. Pulou a mureta do jardim, abriu a porta sabe-se lá como e se jogou no sofá.
Sentiu um calor repentino correr o corpo inteiro. Levantou e abriu a janela da sala. Respirou o ar frio da madrugada uma, duas, três, várias vezes. A cabeça girava, o estômago começava a embrulhar, mas mesmo assim encheu o pulmão e gritou, com toda a força que tinha:
- Campeão! É campeão!
Ao silêncio que se seguiu, dois cachorros latiram, um gato miou e, antes que fechasse a janela e caísse no carpete sujo da sala, ouviu o vizinho da frente protestar:
- Corintiano filho da puta! Deixa a gente dormir!

DE CARNE E OSSO


Era um mulherão de fechar o comércio.
Longos cabelos morenos, sobrancelhas negras, seios cujas formas voluptuosas a blusa amarelinha deixava adivinhar, calça de jeans apertada, justinha, uma perfeição só.
O caixa do banco estava de olho nela fazia bem uns 15 minutos. 

E contava os segundos para atendê-la.
Finalmente, ela ficou na frente dele, olho no olho, aquela boca carnuda a menos de 30 centímetros da sua boca atônita.
- Pois não - quase gaguejou de tanta emoção, o coração aos pulos, descontrolado.
- O senhor pode depositar esse cheque? Cai na conta hoje? - perguntou, com uma voz de criança, fininha, sem entonação e nenhuma graça.
- Cai, sim - respondeu o caixa, aliviado por ver que a sua deusa era apenas só mais uma mulher.
E antes de chamar o próximo cliente, viu que o relógio da parede marcava 11 e 15 e ele tinha ainda um longo dia pela frente.





SEM PARAR


Furava os semáforos vermelhos igual faca cortando manteiga.
Colava na traseira de quem ia na frente e piscava os faróis até passar.
Pegava a contramão com a inocência das crianças travessas.
Andava na faixa dos ônibus na cidade e nos acostamentos nas estradas.
Não suportava ficar atrás de carro nenhum.
Estacionava nas vagas para idosos no shopping.
Um dia comprou o Sem Parar e no feriado desceu para o litoral.
Excitado, entrou no pedágio a quase 100 por hora.
Quebrou a cancela, quatro dentes e teve escoriações feias no braço direito.
Pior: trocou o capô, o para-brisa e os dois espelhos.
Mais a multa, levou um prejuízo de R$ 5 mil.
E enquanto o sol brilhava na Baixada, ele via na Globo o seu Tricolor perder para o Coringão.
Com dois gols do Ronaldo, o gordo Ronaldo.

PINTOR DE PAREDES


Olhou a mancha feia no meio da parede da sala e avisou a dona da casa:
- Vai precisar de três mãos de tinta.
A mulher não gostou:
- Bobagem, duas tá bom demais.
Resolveu não brigar:
- A senhora manda.
E atacou com vontade as paredes.
Duas mãos de tinta depois, a mancha continuava lá. Fraquinha, mas lá.
- Eu não disse? - falou o pintor.
A dona da casa não deu o braço a torcer:
- Não gostei da cor. Ficou muito clara. Vamos mudar.
O pintor gastou mais dois dias e mais duas mãos de tinta para deixar a sala roxa.
Um horror.
- Ficou ótimo - falou a mulher.
Mas ele não escutou. 
Olhava mais uma mancha no teto do corredor.
Outra danada que só ia sair com três mãos de tinta.




NA PRAÇA



Era impossível alguém não notar a figura alta, magra, suja, repulsiva até, que andava de um lado para outro na praça, os braços se abrindo e fechando, a boca se mexendo, tentando formar palavras, frases, sons vagamente humanos.
E quando se aproximava de alguém e estendia a mão, parecia que quase não pertencia mais a este mundo.
- Passa fora, vagabundo - dizia o homem de terno escuro que carregava uma maleta.
- Não tem polícia em lugar nenhum desta cidade - reclamava a senhora bem vestida que apressava o passo.
- Mãe, ele tá bêbado? - perguntava o menino à bonita jovem de calça justa que o levava pela mão.
Um cachorro preto e feio acompanhava o pedinte. 
Língua de fora, seguia o mendigo por todo o lado. 
Até mesmo quando ele se sentou, talvez cansado, talvez apenas para esperar que um improvável sol viesse esquentá-lo naquela manhã.
Foi quando o animal se assustou com a buzina estridente de um enorme caminhão betoneira que tentava desviar de um minúsculo e inacreditável Fiat 147 que furou o semáforo vermelho.
O bicho disparou pelo gramado mal cuidado, passou por entre os carros estacionados, e o que se ouviu depois foi um só um ganido, um lancinante e doloroso uivo.
Ninguém na praça ficou indiferente. 
Todos correram para ver o que havia acontecido.
Assim, não perceberam quando aquela aberração vestida em trapos se levantou do banco e correu para longe da praça, para longe do mundo.
A boca se mexendo, as lágrimas escorrendo pelo rosto abaixo, grossas, salgadas.



PARABÉNS PRA VOCÊ



No mês, o Parabéns Pra Você já havia sido cantado oito vezes no escritório.
Foram cinco bolos de chocolate com morango, dois de brigadeiro e um de coco - coberto com chocolate.
Naquela terça-feira, quando mais uma vez todos se levantaram para cantar novamente o Parabéns e comer - outra vez - bolo de chocolate, seu Messias, no alto de seus 71 anos, mais de 40 de casa, não aguentou a parada.
Balançou a cabeça, guardou a caneta na gaveta, pegou o envelope do Lavoisier e saiu da sala rumo ao Departamento Pessoal com uma só ideia.
O exame de sangue era claro e taxativo. 
Glicose alta demais. 
Açúcar, nem pensar. 
E, na sua idade, abandonar o vício era impossível.
Melhor partir para a aposentadoria.




HIPOCONDRÍACO


Como era ainda cedo para voltar ao trabalho, resolveu dar uma passada na farmácia da esquina para conferir as novidades.
Estava bem abastecido de analgésicos e antidiarréicos. 
Os remédios para o estômago ainda davam bem para umas duas semanas. 
Também não precisava do antialérgico.
Na gôndola dos produtos naturais, um guaraná composto chamou a sua atenção. Seria bom nos dias de desânimo.
Ao lado, as vitaminas prometiam novidades. Alarme falso. Nada que não conhecesse.
Meio desapontado, foi para o caixa. 
Pagou com dinheiro, pegou o troco, e, quando estava para atravessar a rua, ao virar a cabeça para ver se vinha algum carro, sentiu uma dorzinha no pescoço. 
Quase um torcicolo.
Deu meia volta e entrou feliz na farmácia para comprar uma pomada com anti-inflamatório.




CURRÍCULO COM FOTO E CAPRICHO

Dezoito anos recém-completados, a indecisão sobre o que fazer da vida e a necessidade de ajudar a casa, a mãe, dona Lindinha, cheia de achaques, o pai, seu Oswaldo, à beira de uma aposentadoria inglória, o irmão, Waltinho, às voltas com a oficina mecânica e as contas sempre a pagar.
Quanta responsabilidade!
Foi então que Soninha tomou uma decisão.
Iria trabalhar.
Secretária, recepcionista, quem sabe vendedora de uma butique de luxo.
Pediu conselhos para as amigas, chegou até a telefonar para dona Alzira, ex-professora que era como sua madrinha.
E assim, com toda essa ajuda, preparou um currículo caprichado.
Não esqueceu de acrescentar um toque pessoal:
"Alegre, comunicativa, simpática e de fácil relacionamento."
Leu e releu. Mostrou para a mãe - teve vergonha de levar para o pai.
Dona Lindinha até que gostou, mas fez, séria, uma observação:
- Põe uma foto sua, Soninha. Vai ajudar, você é tão bonita...
Soninha pensou, pensou e achou que era uma boa ideia.
Betinho, o rapaz do 75 que tinha uma queda por ela, foi quem tirou a foto.
Fez pose de moça séria, deu um sorriso cheio de esperança.
Faltava apenas mandar o currículo.
Betinho ajudou também nisso: tinha computador e foi fácil arranjar uma lista de empresas, do comércio, de advogados, médicos, dentistas, todo mundo da cidade que pôde encontrar.
E o currículo entrou na rede.
Dia seguinte, Soninha, com o coração batendo mais forte, abriu seu e-mail no computador da lan house do bairro.
Duas mensagens.
Uma pedia que ela fosse, na terça-feira, a uma entrevista numa fábrica de autopeças que ficava do outro lado da cidade. Recepcionista. Tinha boa chance de conseguir o emprego.
Foi a outra, porém, que mudou sua vida.
"Soninha, você é linda. Não sei dizer mais nada além disso. Quero muito conhecê-la. Sou solteiro, bispo da igreja evangélica Deus na Terra, da Vila Bueno. Acho que você é a resposta às minhas preces. Eu só peço que você responda a este e-mail. Precisamos nos encontrar. Um beijo do sempre seu, Luís."
Anexada à mensagem estava uma foto do bispo Luís.
Soninha respondeu - com alguns erros, perdoáveis, de digitação -, marcou um encontro e viu que a foto do bispo Luís não lhe fazia justiça. Era mais velho pessoalmente, mas muito distinto.
Namoraram pouco - só seis meses. Depois se casaram.
Com as bençãos de dona Lindinha e seu Oswaldo. Até o irmão aprovou.
Mas o bispo Luís insistiu numa coisa: Soninha não tinha nada de trabalhar fora de casa.
E foi assim mesmo que aconteceu: ela nunca na sua vida inteira soube o que era isso.



TUDO POR ELA

por ela
cortou o cabelo
fez a barba
e passou a escovar os dentes três vezes ao dia
por ela
comprou quatro camisas sociais brancas
duas calças cinzas
e um sapato marrom
por ela
trocou o rabo de galo pelo campari
a cerveja por um suco de laranja sem açúcar
e a feijoada pelo sushi
por ela
correu dez quilômetros numa chuva fina e fria
atravessou três sinais vermelhos na avenida sinuosa
bateu o carro seminovo no ônibus que virava a rua
a cem metros do prédio de grades azuis e jardim de gerânios
onde seu amor morava
por ela
desmaiou enquanto a sirene da ambulância irritava os raros fregueses da padaria recém-inaugurada
acordou na asséptica sala do pronto-socorro do velho hospital do bairro
e recebeu pinos de titânio no braço magro em que havia tatuado o nome daquela que seria a sua mulher
por toda a vida



LUISINHO ATRASA DAS CONTAS

A fila do banco chegava quase na porta giratória. Só 20 minutos depois de avançar uns cinco metros em direção aos caixas foi que viu que apenas dois estavam abertos. 
Na verdade, um só: o outro era para idosos e gestantes. A atendente lixava as unhas, sem mais nada para fazer. 
Com a cabeça pesada, os pés inchados, o suor escorrendo do rosto e manchando a camisa, as costas doendo, achou que não ia aguentar. 
Saiu da fila, virou à esquerda e, ao avistar dois rapazes batendo papo em suas mesas, perguntou, com o que restava de suas forças:
- Por favor, quem é o gerente da agência?
Um deles se dignou a olhar aquela triste figura e respondeu, com uma voz fininha, chata e petulante:
- O gerente está almoçando. Volta só às 14 horas.
Seu relógio marcava meio-dia e vinte. Definitivamente, não ia conseguir esperá-lo.
Arriscou uma reclamação:
- Quer dizer que não tem ninguém que possa dar ordem para abrir mais caixas? Olha só o tamanho da fila...
Aí foi a vez do outro rapaz. Voz mais grossa e entonação ainda monótona, arrogante:
- O senhor não vê que estamos em horário de almoço?
E virou as costas para continuar a conversa.
Foi o que bastou para que Luís Carlos Almeida de Souza, que todos de sua vizinhança e do seu trabalho conheciam como Luisinho, um sujeito pacato que só saía do sério quando o Santos perdia e os amigos resolviam lembrá-lo do vexame, esquecesse das lições de sua mãe sobre como era feio falar palavrão - e da surra que levou certa vez de seu pai por ter dito que aquela novela da Globo que o impedia de ver um superfilme de bangue-bangue na Record era uma "merda".
Bem, isso havia ocorrido muito tempo atrás. 
Naquela agência bancária pequena, abafada e calorenta, ele não repetiu, para todos os que ali estavam, aquelas bobagens de criança.
Para um adulto como ele, vivido, cada vez mais cansado e dolorido, "merda" era pouco. 
As sete pragas do Egito saíram de sua boca como uma tormenta, um vendaval, um maremoto, um furacão - como a lava de mil vulcões, as chamas do inferno.
As contas da luz, da água e do telefone iam atrasar de novo.
Besteira. 
Valia mais aquela estranha sensação que o abrigou no resto do dia. Algo tão forte que até sua mulher, geralmente tão alheia à sua intimidade, reparou:
- Nossa, Luisinho, que é que você tem? Hoje você está tão diferente...



CORAÇÕES SOLITÁRIOS



Na véspera do Dia das Mães se aventuraram no shopping.
Muitas lojas depois, entraram naquele enorme magazine que anunciava preços até "30% off".
Havia gente demais, ofertas tentadoras demais.
Ela abriu caminho pela seção de roupas femininas.
Ele desbravou o de utilidades domésticas.
As pessoas eram tantas e os cartazes tão convincentes que, passadas duas horas,
ele,
dor nas costas, resolveu dar por encerrada a expedição por panelas, travessas, pratos;
ela,
cabeça a latejar, achou que iria sufocar se continuasse a experimentar blusas, calças, pijamas;
e assim, como por encanto, os dois se viram face a face na enorme fila única do caixa.
E já que eram dois sobreviventes, deram as mãos e foram embora, felizes por terem enfim se encontrado.




VIAGEM PELO ARCO-ÍRIS


Falava pouco, ria menos e passava os dias a caminhar sozinho.
Certa vez choveu muito, até que as nuvens foram embora e o sol chegou.
E um enorme arco-íris atravessou a cidade de ponta a ponta.
Ele, que seguia distraído por uma rua estreita e íngreme, perseguiu as cores como um predador fareja a presa e assim andou, andou por horas.
Até que tropeçou num pote de ouro.
Rodopiou e caiu como um balão murcho no chão duro.
Foi uma queda e tanto.
Tão violenta que seu corpo se entregou ao cansaço e ele placidamente adormeceu.
Quando acordou, era noite e estrelas cadentes riscavam o céu.
Tantas e tantas que perdeu a conta.
E ao amanhecer, com o cheiro da vida à sua volta, já havia se esquecido de onde estava.
Ou como chegara ali. 
Mas não se importou. 
O mundo começava, enfim, a fazer sentido.



DEDO DURO

Começou cedo.
Quando a professora quis saber quem havia soltado aquele peido estereofônico, foi o primeiro a dizer:
- Não fui eu. Foi o Zezinho.
E apontou o magricela com seu indicador pequeno e raquítico, duro e incisivo.
Ao episódio sonoro sucederam-se outros, de vários tipos e único gênero.
Certa vez falou para o pai que a Inezinha, sua irmã, passava no shopping as tardes em que deveria estar estudando.
Noutra ocasião contou para a mãe que viu o pai parar o carro na esquina e dar carona para a Betinha, a moça loira e bonita do terceiro andar.
Acostumou-se com a delação.
Fez dela um estilo de vida - cômodo, prático, eficaz.
Degrau a degrau, escalou metodicamente posições que o levaram a ser tudo o que sempre quis: viver a tranquilidade dos sem-consciência.
Era apontado pelos vizinhos como modelo a ser seguido.
Só uma vez teve as convicções abaladas.
O filho, adolescente quieto, chegou em casa com a cara inchada, a orelha amassada, o olho fechado.
- Fala quem foi que fez isso, fala de uma vez!
E o garoto quieto.
- Fala que eu entrego esse filho da puta pra polícia!
E nada, nadinha de nada, nem uma palavra.
Nunca entendeu a razão do silêncio, nem soube de nome nenhum.
Mas sempre quis apontar o filho para todos e gritar, o coração explodindo de orgulho:
- É o meu garoto, ele sabe ficar quieto!



O AMOR NA PADARIA


O garçom magrinho equilibrava a custo a bandeja quase cheia, com duas médias, um suco de laranja, meia dúzia de pães de queijo e um misto quente. 
Passava um pouco das 9 horas da manhã e pela porta aberta da padaria entrava um frio de rachar.
O garçom magricela tinha acabado de esvaziar a bandeja e fazia, no balcão, mais um pedido para o chapeiro.
Foi quando uma moreninha também magrinha, pequenina, cabelos curtos, bateu em seu ombro direito.
Ele se virou.
Ela estendeu uma blusa de lã verde escuro para ele:
- Trouxe para você vestir. Hoje está muito frio.
Ele a pegou e antes de vesti-la deu um rápido, um leve beijo no rosto da mocinha morena magrinha:
- Obrigado, amor.
Ela se virou e saiu para a rua, para a manhã fria.
Saiu para um sol pálido, para um dia de sonhos com o seu amado.

VERDADEIRO FALSO AMOR


Ela não ligava em desfilar com a bolsa Louis Vuitton forrada com um paninho sintético frágil e feio que o namorado lhe deu num chuvoso domingo pleno de romantismo em que assistiram juntinhos ao último filme do Brad Pitt com a Angeline Jolie.
Ele vestia com orgulho a camisa polo com o jacaré da Lacoste com o rabo virado para o lugar errado que ganhou dela naquele seu aniversário de 20 anos que comemoraram com cerveja estupidamente gelada e batatas fritas num barzinho da Vila Madalena. 
O amor dos dois era verdadeiro - e só isso importava.